V

O Vermelho e o Negro combina a apresentação de um painel (cáustico) da sociedade francesa do tempo dos ultrascom a criação de um típico herói romântico (Julien Sorel), consumido por um amor impossível.

Julien Sorel é filho do proprietário de uma pequena serraria no interior da França. Aprendeu latim e, dotado de memória excepcional, era capaz de decorar os textos em latim dos grandes clássicos e da própria Bíblia. Do ponto de vista do pai e dos irmãos, musculosos e ignorantes, aquelas qualidades eram o suficiente para o considerarem inútil e o maltratarem impiedosamente. Julien simpatiza secretamente  com Napoleão e sua época, naturalmente sem nenhuma base objetiva, apenas por imaginá-la como um grande contraste à situação que presencia.

Stendhal pinta a sociedade francesa como achando-se sufocada pelo medo, encontrando-se na mais absoluta dependência da nobreza ressuscitada, ávida por recuperar o tempo perdido, detentora do poder em Paris.

A pequena cidade em que vive Julien (Verrières) é dominada pelo Senhor de Renal -- dono da fábrica de pregos -- que, após a Restauração, envergonhado de ser industrial, consegue fazer-se Presidente da Câmara Municipal. Na cidade campeia a subserviência e a maledicência. Os incidentes que a absorvem são absolutamente banais.

Outro grupo social descrito da forma a mais desfavorável é o clero. Julien Sorel passa quatorze meses num seminário onde a grande maioria dos noviços é constituída de rudes camponeses, sem nenhuma vocação.. O importante é adquirir um certo ar de santidade. Deste modo, a hipocrisia é a nota dominante. Entre os padres, o maior empenho é portar-se de modo a conseguir uma paróquia onde a renda da igreja  proporcione vida farta e tranqüila. A única figura decente nesse meio – o padre Pirard, apresentado como jansenista, isto é, pertencente ao grupo de partidários de uma igreja independente de Roma que aceitava muitos dos postulados da Reforma – acaba sendo perseguido. Descrito como protetor de Julien, o padre Pirard consegue-lhe numa colocação em Paris, onde o levará a muitas sociedades de jansenistas. Julien fica então espantado; em seu espírito, a  idéia de religião estava intimamente associada à hipocrisia e à esperança de ganhar dinheiro. “Passa a nutrir admiração por aqueles homens piedosos que não pensam em orçamentos... Um novo mundo abre-se para ele”.

Na carruagem que o transporta a Paris, Julien presencia um dos poucos comentários constantes do livro em que Napoleão é citado nominalmente. Trata-se de comentários de um grande proprietário que, enojado do ambiente da Corte, refugia-se no interior e também ali não suporta a convivência. Este personagem culpa abertamente a Napoleão pela Restauração, com uma curiosa argumentação. Com a Concordata, tornou os padres funcionários públicos ao invés de obrigá-los a ganhar a própria vida da mesma forma como o fazem o comum dos profissionais liberais (médicos, advogados...). E prossegue: “E haveria hoje esses fidalgos insolentes se o seu Bonaparte não tivesse feito barões e condes; não, a moda teria passado. Depois dos padres, são os fidalgozinhos campestres que me causaram maior irritação e fizeram com que aderisse aos liberais.”

A estada em Paris irá proporcionar a Stendhal a oportunidade de descrever (e criticar) os  nobres do Antigo Regime, agora de novo no poder.

O novo emprego de Julien é na casa de um rico Marquês (De La Mole), à espera de ser elevado a Duque e tornado Par de França. Em seu salão pululam bajuladores. Refere-os deste modo: “... em primeiro lugar, cinco ou seis amigos da casa, que o lisonjeavam a todo instante, acreditando achar-se protegidos por um capricho do Marquês. Eram pobres criaturas mais ou menos triviais; mas cabe dizer em louvor desta classe de homens, tal como se encontra hoje nos salões da aristocracia, que não se rebaixam igualmente para todos. Alguns deles se deixariam maltratar pelo Marquês, mas se sentiriam revoltados ante uma palavra áspera que a sra. de La Mole lhes dirigisse”.

E mais: “Havia muita soberba e bastante tédio no fundo da alma dos donos da casa; estavam muito acostumados a ultrajar para quebrarem o aborrecimento, de modo que não podiam esperar verdadeiros amigos.” Num dos momentos de intimidade, que o Marquês por vezes lhe permite, confessa-lhe que “é preciso se divertir ... só isso é real na vida.”

Em síntese, o tom das conversas pauta-se pelo seguinte: “Contanto que não se brincasse nem com Deus nem com os padres nem com o Rei nem com os artistas protegidos pela Corte nem com tudo que é estabelecido; contanto que não se falasse bem nem  dos jornais de oposição nem de Voltaire nem de Rousseau nem do que parecesse liberdade de opinião; contanto que sobretudo não se falasse nunca de política, podia-se livremente discorrer sobre qualquer coisa.”

Entretanto, o fio condutor do livro é a paixão de Julien Sorel pela Senhora de Rênal. Casada com o todo poderoso Presidente da Câmara de Verrières, tem três filhos. Contratado para trabalhar como preceptor das crianças, Julien tinha na época 19 anos. Apaixona-se perdidamente por aquela bela mulher que resiste o quanto pode mas acaba por permitir que expresse o seu afeto. Julien o faz da forma a mais imprudente, para seu desespero. A situação mantém-se nesse pé até que Julien vai para o seminário. No intervalo a Senhora de Renal é consumida pela paixão e tudo faz para esquecê-lo. No dia em que deve transferir-se para Paris, Julien irrompe em seus aposentos à noite. A Senhora pensa resistir mas acaba cedendo. Por ter concordado em que permanecesse ali escondido durante o dia seguinte, vê-se colocada em situações verdadeiramente ridículas perante o marido e empregados. Afinal descoberto, sem ser identificado, foge.

Em Paris, em casa do Marquês de La Mole parece de todo haver esquecido o primeiro amor. Apaixona-se pela única filha e herdeira do poderoso senhor, Matilde. É uma jovem com a cabeça cheia de fantasias acerca dos seus ancestrais na Idade Média. Seu estado de humor oscila e alterna-se do mesmo modo que a relação com o amante. Afinal acaba por engravidar. Para abafar o escândalo, a família consegue faze-lo passar pelo filho bastardo de um nobre e permite que se realize o casamento. É colocado no exército. A sorte parece sorrir-lhe. Nessa altura, investigando o seu passado, o Marquês obtém uma carta da Senhora de Rênal onde diz coisas dessa ordem: “Pobre e ávido, é com a ajuda da mais consumada hipocrisia e pela sedução de uma mulher rica e infeliz que este homem  procurou conseguir uma nova situação e se tornar alguma coisa. Faz parte de meu penoso dever,  acrescentar que sou obrigada a crer que o sr. J. não deve ter nenhum princípio de religião. Em sã consciência sou levada a crer que um dos seus meios para ter êxito em uma casa consiste em procurar seduzir a mulher que ocupe a mais destacada posição. Coberto por uma aparência de desinteresse e por frases de romance, seu grande e cínico objetivo é chegar a dispor do dono da casa e de sua fortuna. Deixa atrás de si um rastro de desgraças e de lamentações eternas ...”.

Tudo desfeito, a reação de Julien Sorel é verdadeiramente espantosa e mais ainda o que se segue. Vai a Verrières e dá dois tiros na Senhora de Rênal, em plena igreja, durante o culto. Preso é condenado á morte. Tendo sofrido apenas um ferimento, a vítima o procura na prisão e a paixão se reacende de ambos os lados. A pobre Matilde como que é esquecida. Finalmente, morre na guilhotina.

Como se indicou no verbete dedicado ao autor, Stendhal baseou-se numa história em parte verídica, notadamente o incidente da igreja. Mas, a partir de tais elementos, criou uma figura verdadeiramente espantosa.. Afora a fixação no amor impossível, típico de uma época de exaltação romântica, o que de fato  move  Julien Sorel perante a sociedade? Ressentimento pela origem humilde e a simultânea evidência de sua superioridade intelectual diante de nobres e burgueses? Difícil de decidir. Do mesmo modo que o título pondo em contrate duas cores que podem simbolizar coisas diversas e que nem por isto se enquadram no contexto do livro. O certo é que se trata de uma criação imorredoura. Capaz de prender e deleitar o leitor mesmo em sucessivas leituras quando não há surpresas. Somente essa extraordinária qualidade literária explica a sua permanência no Cânon, que somente pode abrigar em seu seio as  obras literárias que alcançam a perenidade por seus exclusivos méritos. (Ver também (A) Cartuxa de Parma e STENDHAL)


A denominação designa as figuras que exercem o poder no período que vai da queda de Napoleão (1815) à Revolução Liberal de 1830. Trata-se do ciclo em que se tenta restaurar o Antigo Regime (assim chamado o que vigorava antes da Revolução Francesa).