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O sagrado e o profano,(1) do pensador romeno Mircea Eliade (1907-1986), resume o essencial da investigação do notável estudioso. Eliade não se deixa impressionar pela secularização promovida pela Época Moderna Ocidental, convencido que está de  que muitas das atitudes dos modernos encontram sua explicação última na religiosidade do homem. O livro estuda a experiência religiosa, detendo-se no exame da construção das idéias de espaço e tempo, e, finalmente, da vivência religiosa propriamente dita. Na conclusão examina especificamente o tema do sagrado e do profano no mundo moderno.

Para Mircea Eliade, o homem toma conhecimento do sagrado porque “este se manifesta, se mostra como qualquer coisa de absolutamente diferente do profano”. O autor romeno propõe o termo hierofania para indicar o ato da manifestação do sagrado; esse termo, aliás, é prático, porquanto apenas exprime o conteúdo etimológico, a saber que “algo sagrado se nos mostra”. As religiões não são mais do que o encadeamento de hierofanias. Nelas, encontramo-nos diante de algo misterioso: a manifestação de uma realidade diferente, que não pertence ao nosso mundo, através de objetos que formam parte dele. No fato da hierofania aparece, no sentir de Mircea Eliade, um paradoxo que ele destaca da seguinte forma: “(...) Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa, e contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do seu meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (com maior exatidão: de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, a sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Por outros termos, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos na sua totalidade pode tornar-se uma hierofania”.

A propósito do aspecto vivencial do sagrado, destaca o seguinte: “(...) o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história”. O escritor romeno salienta que o estudo dessas vivências interessa não só ao historiador das religiões, mas também “(...) a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana”. Embora na caracterização das vivências do sagrado e do profano, Mircea Eliade acuda a exemplos da história das religiões, o seu interesse inicial é identificar as feições essenciais, arquetípicas, delas, notadamente da experiência religiosa. “O que nos interessa em primeiro lugar – frisa Mircea Eliade – é apresentar as dimensões específicas da experiência religiosa, salientar as suas diferenças com a experiência profana do Mundo. Não insistiremos sobre os inumeráveis condicionamentos que a experiência religiosa do Mundo sofreu no curso do Tempo (...).

O homem religioso tem horror da homogeneidade do espaço profano. Desnorteia-se nele. Perde ali o referencial. Assim como na nossa existência do dia-a-dia, na consolidação do nosso mundo particular, há espaços mais significativos do que outros (a cidade dos primeiros amores, a terra natal etc.), que nos permitem estruturar a nossa própria orientação, de forma semelhante para o homem religioso há a imperiosa necessidade de encontrar o espaço sagrado, a partir do qual possa se orientar no universo. Ora, a experiência dessa necessidade é arquetípica. A respeito, frisa Mircea Eliade: “Digamos imediatamente que a experiência religiosa da não-homogeneidade do espaço constitui uma experiência primordial, homologável a uma ‘fundação do mundo’. Não se trata de uma especulação teórica, mas de uma experiência religiosa primária, que precede toda a reflexão sobre o mundo. É a ruptura operada no espaço que permite a constituição do mundo, porque é ela que descobre o ‘ponto fixo’, o eixo central de toda a orientação futura. Quando o sagrado se manifesta por uma qualquer hierofania, não só há ruptura na homogeneidade do espaço, mas há também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à não-realidade da imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo (...)”

Assim como o homem religioso procura sacralizar o espaço, insere-se sua existência, também, no contexto de um tempo sagrado, tempo primordial, raiz ontológica do tempo profano, do dia-a-dia. “(...) É – frisa Mircea Eliade – um tempo ontológico por excelência, ‘parmenidiano’(1) mantém-se sempre igual a si mesmo, não muda nem se esgota. Com cada festa periódica reencontra-se o mesmo tempo sagrado – o mesmo que se manifestara na festa do ano precedente ou na festa de há um século: é um tempo criado e santificado pelos Deuses quando das suas gesta, que são justamente reatualizadas pela festa. Por outros termos, reencontra-se na festaa primeira aparição do tempo sagrado, tal qual ela se efetuou ab origine, in illo tempore. (...)  Criando as diferentes realidades que constituem hoje o mundo, os Deuses fundavam igualmente o tempo sagrado, visto que o tempo contemporâneo de uma criação era necessariamente santificado pela presença e a atividade divinas”.

Daí a importância definitiva que as Festas representam para o homem religioso. Porque são elas, sem dúvida, os momentos sagrados que consagram o sentido da vida humana, inserindo-a num contexto sacral. “Na festa – frisa Mircea Eliade – reencontra-se plenamente a dimensão sagrada da Vida, experimenta-se a santidade da existência humana como criação divina. No resto do tempo, há sempre o risco de esquecer o que é fundamental: que a existência não é ‘dada’ por aquilo que os modernos chama ‘Natureza”, mas sim que é uma criação dos Outros, os Deuses ou os seres semidivinos. Mas nas festas reencontra-se a dimensão sagrada da existência, tornando-se a aprender como é que os Deuses ou os Antepassados míticos criaram o homem e lhe ensinaram os diversos comportamentos sociais e os trabalhos práticos”.

Eliade apresenta exemplos edificantes da permanência, em nossa vida cotidiana, dessas experiências primordiais. A título de exemplo, basta referir que, no sentir de Mircea Eliade, a experiência primeira do espaço sagrado constitui a base a partir da qual se desenvolve a arquitetura urbana, domiciliar e religiosa. “A arquitetura sacra – frisa o nosso autor – não faz mais portanto do que retomar e desenvolver o simbolismo cosmológico já presente na estrutura das habitações primitivas. Por seu turno, a habitação humana fora precedida cronologicamente pelo ‘lugar santo’ provisório, pelo espaço provisoriamente consagrado e cosmisado (...). Isto é o mesmo que dizer que todos os símbolos e rituais concernentes aos templos, às cidades e às casas derivam, em última instância, da experiência primária do espaço sagrado”.

Do que se indicou precedentemente, depreende-se uma característica do conteúdo transmitido pelo mito, que forma parte da mentalidade do homem religioso: para ele, nas palavras de Mircea Eliade, “(...) o essencial precede à existência. Isto é verdade tanto para o homem das sociedades ‘primitivas’ e orientais como para o judeu, o cristão e o muçulmano. O homem é aquilo que é hoje porque uma série de acontecimentos ocorreram ab origine. Os mitos contam-lhe esses acontecimentos e, ao fazê-lo, explicam-lhe como e por que razão ele foi constituído desse modo. Para o homem religioso, a existência real, autêntica, começa no momento em que recebe a comunicação dessa história primordial e assume as suas conseqüências. Há sempre história divina, pois as personagens são os Seres sobrenaturais e os Antepassados míticos (...)”.  Para Eliade, como oportunamente lembra Luiz Carlos Lisboa, (Um pioneiro chamado Eliade. Cultura – O Estado de São Paulo, V (309), 1986): “o sagrado está na estrutura da consciência e de forma alguma é apenas uma fase da história dessa consciência”. (Ver também ELIADE).


(1) O título completo do livro é O sagrado e o profano: a essência das religiões. A edição original apareceu em francês. A tradução ao português foi efetivada pela Editora Livros do Brasil, de Lisboa. A edição brasileira é da Martins Fontes (1992).

(1) Refere-se a Parmênides, filósofo grego (515-440 a.C.), considerado o primeiro a afirmar a existência de uma permanência naquilo que aparece, idéia que mereceria grande elaboração tanto em Platão como em Aristóteles.