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O que é a propriedade, publicado em 1840, consiste numa tentativa do autor, Pierre-Joseph Proudhon, de dar continuidade à meditação de Rousseau, associando-a ao movimento socialista que assumiu uma expressão concreta na França de seu tempo. Rousseau havia postulado que, eliminando-se as instituições opressoras criadas pela sociedade e permitindo-se a emergência da vontade geral, o povo saberia encontrar o seu destino numa espécie de assembléia permanente. Os rumos seguidos pela Revolução Francesa mostraram o caráter ilusório daquela postulação. Entretanto, as gerações seguintes passaram a entender que semelhante desfecho não significava a impossibilidade de uma sociedade justa. A linhagem Saint Simon, Fourrier e Augusto Comte tratou de comprovar que, pela constituição de uma ciência da sociedade, pode-se chegar a um consistente projeto de reforma social. Agora o governo é uma questão de competência. O que é a propriedade reflete esse conjunto de influências. O homem é bom e o progresso é possível, como queria Rousseau. Ainda assim, tal resultado não advirá espontaneamente mas de descobertas científicas que indiquem, de modo preciso, o caminho a seguir. A contribuição de Proudhon consiste em pretender sofisticar essa argumentação, acrescentando-lhe a dialética hegeliana. A sua proposta é apresentada como uma síntese de uma tese e de uma antítese anteriores. Por tudo isto considera-se que influi sobremaneira no pensamento de Carlos Marx, cujo socialismo científico ter-se-ia inspirado em Proudhon. O rompimento entre os dois, que se deu mais tarde, decorreria do empenho de Marx de defender, a todo custo, a originalidade de sua doutrina.

O que é a propriedade contém de início, é a apresentação do método que seguirá o autor. Consiste em tentar provar que a Revolução Francesa buscou cumprir o legado de Cristo no tocante à realização da justiça mas fracassou porque os grandes textos que a definem – O contrato social, de Rousseau, eO que é o Terceiro Estado, de Sieves(1) – não atentaram para a questão central.  A Revolução proclamou que todos os homens são iguais por natureza e perante a lei. A igualdade natural não corresponderia a atributos físicos ou psíquicos mas à igualdade civil e política. Portanto, bastaria ter feito referência ao segundo aspecto. E acrescenta: “Mas o que é a igualdade perante a lei? A Constituição de 1790, a de 93, a Grande Carta (1814) e tampouco a Carta “aceita” (1815) foram capazes de defini-la. Admitem a desigualdade de fortuna e de status, de todo incompatíveis com a mais tênue igualdade de direitos. A esse respeito pode-se dizer que todas as nossas Constituições foram expressões infiéis da vontade popular”.

Depois de apresentar fatos que, a seu ver, comprovariam terem sido sucessivamente marginalizados os despossuídos, afirma que os três princípios fundamentais da sociedade moderna, consagrados pela Revolução Francesa são 1) o despotismo; 2) a desigualdade de renda e 3) a propriedade. Sua investigação destina-se a examinar se essas idéias estão em harmonia com a primitiva noção de justo. Sua análise subseqüente concentra-se na refutação das justificativas da existência da propriedade. De início a doutrina de que corresponderia a um direito natural (Capítulo 2) e, no seguinte (Capítulo 3) de que proviria do trabalho.

O argumento contra a tese de que a propriedade seria um direito natural repousa na análise dos textos constitucionais que a consideram inviolável, juntamente com a segurança e a liberdade. Entende que aquele atributo (a inviolabilidade) somente se aplicaria aos dois últimos. Associa-o também à manutenção do status quo e à injustiça de conservar na pobreza à imensa maioria, a pretexto daquela inviolabilidade. Também a idéia de que seria proveniente da ocupação parece-lhe insubsistente porquanto seria uma usurpação da parte do primeiro ocupante.

Quanto à teoria de que o valor da propriedade provém do trabalho (das benfeitorias) que ali tenha sido realizado, a crítica de Proudhon tangencia o essencial. Essa doutrina surgiu nos países protestantes e tinha sobretudo o propósito de enaltecer a riqueza, condenada pelos católicos. Subsidiariamente, tratava-se de negar ao monarca o direito de revogar os títulos daqueles nobres em luta contra o absolutismo. Proudhon fixa-se na tese de que contradiz a legislação francesa, segundo entende sustentada pela doutrina da ocupação. Adicionalmente, afirma que a terra, como os mares, não pode ser apropriada por ninguém.

Nesse texto, Proudhon resume a argumentação de Saint Simon e de Fourrier em favor do socialismo. Se o trabalho justifica a propriedade, os trabalhadores é que detêm o seu direito. E, assim, conclui, a doutrina em causa destrói a propriedade.

O quarto e último capítulo está dedicado a provar a impossibilidade da propriedade. Esquematicamente, as teses são as seguintes a propriedade é impossível, porque 1) exige que se retire algo do nada; 2) onde quer que exista, a produção custa mais que o seu valor; 3) dado um determinado capital, a produção é proporcional ao trabalho e não à propriedade; 4) trata-se de um homicídio; 5) com a sua existência, a sociedade devora a si mesma; 6) é a mãe da tirania; 7) usando-a como capital, volta-se contra a produção; 8) seu poder de acumulação é infinito, enquanto se exerce sobre quantidades finitas; e, finalmente, 8) consiste na maior negação da igualdade.

A conclusão da obra está apresentada desde o começo: a propriedade é um roubo. Proudhon não poderia supor que o capitalismo seria capaz de promover a distribuição de renda e disseminar a propriedade. No fundo, acreditava na hipótese de Marx segundo a qual formar-se-iam dois pólos, ambos absolutos, o da natureza e o da riqueza. Quando Lenine percebeu a emergência, na Europa, de uma camada de operários bem remunerados, chamou-os de “aristocracia operária”, imaginando que a distribuição de renda não daria outros passos. O equívoco de Proudhon condenou sua obra ao completo esquecimento. De todos os modos, enfatizou sobretudo o aspecto moral do socialismo, ajudando essa corrente a se transformar num segmento importante da realidade de nosso tempo, no Ocidente, ao contrário do cientificismo de Marx que se identificou sobretudo com tradições orientais, a exemplo do despotismo.


(1)  Joseph Sieyes (1748-1836), vigário geral de Chartres, ganhou popularidade com o livro indicado, aparecido em 1789, que o tornaria, durante a Revolução, figura expressiva, presidente do denominado “Quinhentos”, que exerceu o poder em 1795, depois membro do Diretório (1799). Prepara com Bonaparte o golpe que leva este último ao poder, tornando-se Cônsul, personalidades com as quais Bonaparte governou de início. Veio a ser afastado do poder mas, ainda assim, cumulado de honras.O que é o Terceiro Estado incendiou as mentes porque defendia a hipótese de que, o Terceiro Estado (os burgueses, basicamente, desde que os dois outros correspondiam à nobreza e ao clero) não sendo nada no regime vigente, poderia ser tudo, se a tanto se dispusesse.