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O título completo é o seguinte: Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, livro que Rousseau publicou em 1755. Indica que começou a meditar sobre o tema dois anos antes, inspirando-se numa proposição da Academia de Dijon, entidade da qual merecera um prêmio em 1750. O interesse pela questão da desigualdade será o ponto de partida de sua obra política.

Para Rousseau, quando se instaurou a propriedade, à qual geralmente se atribui a desigualdade, outros passos deveriam ter sido dados naquela direção. Nesse investigação parte da suposição de que existiriam dois instintos básicos, presentes no “homem natural”, isto é, anterior à sociedade. O primeiro seria o instinto de conservação. O segundo conforme suas próprias palavras, “nos inspira uma repugnância natural a ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível, principalmente os nossos semelhantes”. No estado da natureza não se poderia falar em virtudes ou vícios. Essa avaliação é posterior e nos permite, a partir da presença daqueles instintos, verificar que o homem é bom por natureza, tem uma inclinação social sadia e a desigualdade natural não os afetava. Foi a vida em sociedade que alterou esse quadro.

O texto de que se trata é reduzido, tendo apenas 80 páginas, subdividindo-se em Prefácio, Primeira e Segunda Partes.

A passagem do estado de natureza para a vida em sociedade seria um processo espontâneo. Primeiro agruparam-se, para viver em comum, os que tinham a mesma proveniência biológica. Nascem as famílias que, ainda espontaneamente, acabam por aproximar-se. Dessa aproximação é que se instalam os germes da desigualdade. Afirma: “Jovens de diferentes sexos moram em cabanas vizinhas, o relacionamento passageiro, exigido pela natureza, traz logo outro não menos doce e mais permanente, pelo convívio mútuo. Acostumam-se a considerar diferentes objetos e a fazer comparações; adquirem insensivelmente idéias de mérito e de beleza, que produzem sentimentos de preferência. À força de se verem já não podem passar sem se ver novamente. Um sentimento doce e terno insinua-se na alma e, à menor oposição, torna-se um furor impetuoso: o ciúme desperta como amor, a discórdia triunfa, e a mais doce das paixões recebe sacrifícios de sangue humano” (Segunda Parte). Como se vê, originariamente a vida selvagem consiste em algo róseo e bucólico. Em contrapartida, na sociedade, o que era tenro transforma-se em violência.
A idéia de merecer consideração de outrem dá origem aos primeiros deveres de civilidade, mesmo entre os selvagens, mas também, a partir daí, qualquer agravo torna-se ultraje. “Foi assim que, punindo cada qual o desprezo que lhe haviam demonstrado de uma maneira proporcional à importância que atribui a si mesmo, as vinganças se tornam terríveis e os homens sanguinários e cruéis”. Tal é, o sistema de raciocínio a que recorre Rousseau para identificar a origem dos vícios e das maldades que, a seu ver, caracterizam a sociedade dos homens. Originariamente é um impulso altruístico que determina a ação isolada. Esta, em contato com outros homens, degenera, mais das vezes de forma irremediável.

O trecho é algo extenso mas expressivo: “Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a costurar suas roupas de peles com espinhos de plantas ou espinhas de peixe; a enfeitar-se com penas e conchas; a pintar o corpo com diversas cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus arcos e flechas...  enquanto se aplicaram apenas as obras que um homem podia fazer sozinho e às artes que não precisavam do concurso de várias mãos, viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza...  Mas a partir do instante em que um homem necessitou do auxílio de outro, desde que percebeu que era útil a um só ter provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos que cumpria regrar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinaram e medraram com as searas”.

No que respeita à origem do poder político, o contexto em que o situa é muito próximo daquele descrito por Hobbes, segundo o qual tratava-se de “uma guerra de todos contra todos”. Parece a Rousseau que o desenvolvimento das atividades produtivas levou a uma tal ocupação das áreas disponíveis que, sua expansão somente poderia advir do emprego da violência. Os que não se tornaram proprietários, por sua vez, foram escravizados. Os ricos, escreve, comportaram-se “como esses lobos famintos que, tendo provado uma vez carne humana, rejeitam qualquer outro alimento e só querem devorar homens” e pensam exclusivamente em usar seus escravos para submeter outros novos. Às usurpações dos ricos seguem-se as pilhagens dos pobres. Conclui: “À sociedade nascente seguiu-se um terrível estado de guerra; o gênero humano aviltado e desolado, já não podendo voltar atrás nem renunciar às infelizes aquisições que fizera e trabalhando apenas para a sua vergonha, pelo abuso das faculdades que o dignificam, colocou a si mesmo às portas de sua ruína”.

Os ricos deram-se conta de que, para proteger seus interesses teriam que recorrer a algum artifício, buscando empregar em seu favor as próprias forças daqueles que os atacavam. E assim, a questão do governo apresentou-se não para defender seus interesses, seu verdadeiro propósito, mas o de “resguardar os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada qual a posse do que lhe pertence”, e assim por diante. Tratando-se, geralmente, de homens grosseiros, aceitaram tais argumentos e “correram ao encontro de seus grilhões”. Assevera, finalmente: “Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que criaram novos entraves para o fraco e novas forças para o rico, destruíram em definitivo a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de uma hábil usurpação fizeram um direito irrevogável e, para o lucro de alguns ambiciosos, sujeitaram daí para a frente todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria”.

A proposta contida em O contrato social, que viria a publicar alguns anos mais tarde, em 1762, traça o esquema destinado a reverter o quadro deveras melancólico que entrevê na sociedade de seu tempo, esquema que, num de seus momentos mais dramáticos, o que passou à história com o nome de Terror, a Revolução Francesa cuidou de levar à prática. (Ver tambémROUSSEAU, Jean-Jacques).