O Ópio dos intelectuais, de Raymond Aron, apareceu em 1955 e representou uma tomada de posição diante da influência marxista na França, marcando também um certo direcionamento da obra do autor. Nos anos trinta, preparou-se para especializar-se em filosofia da história, com o que se habilitava a alcançar um lugar de destaque no magistério. Veio a guerra. Atuou na resistência. Dirigiu um jornal que tinha o propósito de manter elevada a moral dos franceses perante o ocupante alemão. Finda esta, retornou ao magistério mas logo se deu conta de que a derrota da ameaça nazista não significava tranqüilidade para a Europa diante do expansionismo soviético. Vivendo no meio intelectual, considerando-se, como todos os outros, homem de esquerda,(1) impressionou-o vivamente o caráter religioso que assumira a adesão ao marxismo, o que, no seu entendimento, acabaria predispondo a sociedade francesa à capitulação perante a agressividade dos russos, a exemplo do que tivera oportunidade de assistir em relação à Alemanha hitlerista.
O Ópio dos intelectuais procura desvendar as razões pelas quais uma proposta aparentemente laica, como a marxista, pudera transformar-se num dogma milenarista. Não teve maior impacto sobre a intelectualidade francesa e serviu sobretudo para que o autor concebesse um programa de trabalho destinado a mostrar a fragilidade e a inconsistência do marxismo, que executou ciosamente a partir de então e nas décadas seguintes. De todos os modos, abriu a pensadores independentes, em toda parte do mundo, a possibilidade de dissentir dos comunistas sem cair nas armadilhas do anticomunismo profissional que então chegou a grassar, nos marcos da guerra fria entre o campo ocidental e o império soviético.
O caminho através do qual trata de desvendar o caráter religioso da adesão ao marxismo, consiste em examinar os grandes mitos em torno dos quais se estrutura aquela adesão, o “mito da esquerda”, o “mito do proletariado” e o “mito da Revolução”.
No tocante ao primeiro mito, Aron transcreve esta definição do homem de esquerda adotada pela revista católica Esprit: “ ... o homem de esquerda – pelo menos aos olhos dos franceses – é aquele que não dá sempre razão à política de seu país e que sabe que não existe nenhuma garantia mística de que continue justa no futuro; é um homem que protesta contra as investidas coloniais; é um homem que não admite atrocidade alguma, seja ela exercida contra o inimigo seja ela exercida em represália. Pode-se falar em esquerda lá onde não embotou este simples sentimento de solidariedade humana para com os oprimidos e os sofredores, que fez outrora multidões européias e americanas levantarem-se em defesa de Sacco e Vanzetti”.(2)
Levando em conta a subserviência da intelectualidade francesa perante o imperialismo soviético, pergunta Aron: será de esquerda a pessoa para quem a União Soviética tem sempre razão? Aqueles que reclamam a liberdade para todos os povos da Ásia e da África mas não para os poloneses ou alemães do Leste? Conclui: “A linguagem da esquerda histórica talvez triunfe em nossa época: o espírito da esquerda eterna morre quando a própria piedade só funciona em mão única”.
Segundo a doutrina marxista, o capitalismo criaria um polo da pobreza e outro da riqueza, cada vez mais distanciados. No Capital, Marx “provou” que ocorreria não só a pauperização relativa do proletariado, isto é, confrontado o padrão de vida da classe mais baixa com o da classe mais alta, mas igualmente pauperização absoluta, vale dizer, presenciaríamos miséria crescente. Por essa razão, os proletários nada tinham a perder senão os próprios grilhões, enterrando para sempre o capitalismo mediante uma revolução. Os socialistas alemães preferiram o curso histórico concreto e foram arquivando sucessivamente as previsões marxistas, inclusive a revolução, embora não renegassem totalmente a doutrina. Na França, entretanto, a “bíblia” do “profeta” Carlos Marx era intocável. De modo que o proletariado continuava sendo encarado como entidade mitológica ao invés de um agrupamento social em vias de desaparecimento, se o considerássemos apenas do ângulo focalizado por Marx, isto é, o padrão de vida, já que se revelava crescente. A argumentação de Aron segue essa linha se bem que haja sentido, mais ou menos na mesma época, a necessidade de aprofundar o entendimento do que seria de fato a sociedade industrial, tema a que dedicou os seus cursos na Universidade e também um conjunto de livros.
Na análise do mito da Revolução, Aron comprova que seus partidários acabam inexoravelmente por aderir ao culto fascista da violência. Acontece que, segundo toda evidência, pondera, “o reino do homem não é certamente o reino da guerra”. Lembra que Herodoto já dizia que “nenhum homem é bastante desprovido de razão para preferir a guerra à paz”.
Dessa análise conclui que, agora, o proletariado é o salvador. Por paradoxal que pareça, a ressurreição das crenças seculares, sob uma forma que se apresenta como “científica”, seduz enormemente aos espíritos que, por vontade própria, privaram-se da fé tradicional.
Nessa obra, Aron trata ainda da aproximação entre o marxismo e a Igreja Católica. Na época (década de cinqüenta), a circunstância parecia limitada ao fenômeno, que analisa, dos “padres operários”. Na arenga que adotam, recusam a hipótese de que estariam abandonando o cristianismo e substituindo-o pelo marxismo. Aron cita o seguinte: “Trazemos em nossa carne os dramas do proletariado e nem uma só das nossas preces e das nossas eucaristias é alheia a esses dramas. ... Nossa fé, que foi um motor poderoso para esta comunhão carnal, com nossa classe operária, com isso em nada fica diminuída ou maculada. ... sem condições materiais mínimas nenhuma vida espiritual é possível... um homem que está com fome não pode crer na bondade de Deus, um homem que está sendo oprimido não pode crer em sua onipotência”. Semelhante catilinaria deixa sem explicação a própria sobrevivência do cristianismo, já que as sociedades precedentes ao capitalismo caracterizavam-se justamente pela pobreza generalizada.
Mais tarde, o Padre Arupe, que foi Provincial da Ordem dos Jesuítas, função que seria batizada de “Papa Negro” – em face da cor da batina usada pela agremiação mas também do poder que desfrutava e da irradiação alcançada no mundo – colocou-a abertamente ao serviço da política exterior soviética, como o documentaria aquele sacerdote que foi seu secretário, Malach Martin, no livro Os jesuítas. A Companhia de Jesus e a traição à Igreja Católica (tradução brasileira, Record, 1989). Na América Latina, tivemos o fenômeno da teologia da libertação, francamente inspirada no marxismo, de persistência inusitada posto que sobreviveu ao fim do comunismo.
A propósito desta simbiose vale transcrever a análise e as ponderações de Roberto Campos, na apresentação brasileira de O ópio dos intelectuais(editora UnB, 1980), embora se trate de transcrição algo extensa, efetivada a seguir:
“Essa empatia entre cristianismo e marxismo deixará de parecer estranha se analisarmos suas semelhanças formais. Ambos começaram como ideologia dos oprimidos, acenando-se com uma visão quiliástica do futuro. Ambos procuraram usar o poder coercitivo do Estado, em favor da Igreja, num caso, ou do Partido Comunista, no outro, não hesitando em perseguir os dissidentes e os heréticos. Mas as semelhanças não param aí. Os cristãos primevos acreditavam numa imediata “Parousia”, isto é, o Segundo Advento de Cristo, trazendo a curto prazo, uma Nova Era. Os marxistas primevos acreditavam numa revolução proletária e na desintegração rápida do Capitalismo pelas suas contradições internas: a taxa declinante de lucros e a pauperização. Ambas as doutrinas somente tiveram êxito após fracassarem suas previsões – tanto a da “Parousia” como a da Revolução Universal – e ambas se tornaram corpos híbridos político-religiosos, como instrumento de propagação do credo. Tal como os cristãos, os marxistas desenvolveram umdogma – o materialismo dialético – pelo qual os fatos históricos são lidos, e distorcidos, à luz do determinismo histórico. O marxismo transformou um “esquema de evolução” numa “história sacra”, cujo milênio seria a sociedade sem classes. O Partido Comunista se autodesignou delegado do proletariado, tornando-se portanto a Igreja dos novos fiéis, completa com seu hagiológio e sua demonologia. Da mesma forma que o Cristianismo, o Marxismo aspirou a ser uma Igreja Universal, e conheceu paralelamente o frustrante desafio das seitas. O cisma iugoslavo e a grande heresia chinesa reproduzem os movimentos da Reforma luterana e calvinista ou do reformismo inglês, em que se combinaram revisionismo do dogma e impulsos nacionalistas. Já o euro-comunismo se parece mais com os movimentos de ecumenismo e secularização que sacodem o catolicismo moderno”.
Pondera, entretanto, “felizmente, as semelhanças formais acima descritas não elidem uma incompatibilidade ontológica. Ambas as doutrinas são totais, no sentido de que inspiram a existência inteira, mas a fé cristã só foi totalitária nas épocas em que ignorou a autonomia da vida profana, enquanto que o comunismo é totalitário na escolástica diária e no comportamentopolítico. Mais fundamentalmente ainda, como diz Aron: “O cristão não pode jamais ser um autêntico comunista, da mesma forma que este não poderia crer em Deus e no Cristo, porque a religião secular, animada por um ateísmo fundamental, professa que o destino do homem se cumpre todo sobre a terra e na cidade. O cristão progressista dissimula a si mesmo esta incompatibilidade”. (Ver também ARON, Raymond)
(1) Nessa época, Aron tentou integrar-se à militância no Partido Socialista mas não se adaptou e, desde então, embora assumisse francamente a opção liberal, preferiu não se filiar a qualquer das organizações partidárias ligadas àquela vertente.
(2) Anarquistas italianos emigrados que foram executados em 1927, nos Estados Unidos, envolvidos em conflito onde morreram duas pessoas. Como inexistissem provas definitivas de sua autoria, entendiam os opositores da punição ter pesado sobretudo a sua condição de líderes sindicais.