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História da civilização na Europa (da queda do Império romano à Revolução Francesa) reúne as aulas sobre o tema ministradas por François Guizot nos anos letivos de 1818, 1829 e 1830, publicadas em 1840. Considera a civilização européia como inteiramente distinta das civilizações antigas que a precederam e fundamenta essa convicção de forma ampla e consistente. O traço essencial residiria em que não obedece a um princípio diretivo único, como se dava anteriormente. Na multiplicidade encontra-se a sua superioridade. Essa circunstância deve-se sobretudo à feição assumida pela Igreja, notadamente a separação entre os poderes temporal e espiritual. É certo que a Igreja, em muitas de suas fases, pretendeu sobrepor-se ao poder temporal. Contudo, o fato de que, em tal separação consiste precisamente a fonte da liberdade de consciência, estimulou a resistência àquelas investidas. Outra contribuição notável advém do fato de que não se haja estruturado em forma de casta, a exemplo do que ocorria nos impérios antigos. A característica desta é a hereditariedade de que resulta o predomínio de determinadas famílias, conduzindo ao mais franco imobilismo social. Ao contrário disto, a Igreja recrutou seus membros nos diversos segmentos da sociedade, tanto nas camadas elevadas como nas inferiores. Esse elemento determinou que, no Ocidente, se formassemclasses sociais. A obra corresponde justamente à reconstituição do processo de estruturação das classes, da luta que vieram a travar entre si, e dos grandes princípios que caracterizam a nossa civilização.

São estes os elementos constitutivos da civilização européia: a aristocracia feudal, a Igreja, as comunas e a realeza. Ao longo dos séculos V ao XII estratificam-se os germens de tudo aquilo que requeria a formação das nações. Mas este último elemento - uma verdadeira nacionalidade - só vai de fato emergir no período seguinte, para concluir-se, no fundamental, nos séculos XVII e XVIII. Fator aglutinante será a tensão entre os princípios da liberdade e da ordem, o primeiro herdado dos germanos e, o segundo, dos romanos.

Na última lição, Guizot estabelece um confronto entre a Inglaterra e o continente que exprime com toda propriedade o seu entendimento da singularidade da civilização européia. Assim, escreve: "Existe, é certo, entre a civilização inglesa e a civilização dos estados continentais uma diferença grave, de que cumpre dar conta. O desenvolvimento dos diferentes princípios fez-se, na Inglaterra, numa espécie de simultaneidade. Quando tentei determinar a fisionomia própria da civilização ocidental, comparada às civilizações antigas e asiáticas, fiz ver que a primeira era variada, rica, complexa, que jamais havia tombado sob a dominação de nenhum princípio exclusivo, que os diversos elementos do estado social achavam-se combinados, combatidos, modificados, que haviam sido continuamente obrigados a transigir e a viver em comum. Este fato, caráter geral da civilização européia, foi sobretudo da civilização inglesa: foi na Inglaterra que se produziu com maior evidência; foi ali que a ordem civil e a ordem religiosa, a aristocracia, a democracia, a realeza, as instituições locais e centrais, o desenvolvimento moral e político marcharam em conjunto, mesclados por assim dizer, com igual rapidez, ao menos a pouca distância uns dos outros. Sob o reino dos Tudor, por exemplo, em meio aos mais expressivos progressos da monarquia pura, vê-se o princípio democrático, o poder popular fortalecer-se quase ao mesmo tempo. Desencadeia-se a revolução do século XVII: ela é ao mesmo tempo religiosa e política. A aristocracia feudal aparece fortemente enfraquecida e com todos os sintomas de decadência. Entretanto, acha-se em condições de preservar um lugar, de desempenhar um papel importante e de fazer sua parte na obtenção dos resultados. O mesmo ocorre ao longo de toda a história da Inglaterra: jamais algum elemento antigo perece completamente; jamais algum princípio especial chega a uma dominação exclusiva. Há sempre desenvolvimento simultâneo das diferentes forças, transação entre suas pretensões e interesses".

No continente, em contrapartida, observa, aparecem todos os elementos constitutivos da civilização ocidental, antes relacionados, mas sucessivamente. Há um determinado século em que se afirma, não certamente em caráter exclusivo, mas com uma predominância bem marcada, a aristocracia feudal, por exemplo. Num outro século o princípio monárquico e, em outro, o princípio democrático.

A conclusão está apresentada nos seguintes termos: "Esta diferença na marcha das duas civilizações apresentam vantagens e inconvenientes. Ninguém duvida que este desenvolvimento simultâneo dos diversos elementos sociais hajam contribuído em muito no sentido de que a Inglaterra haja chegado mais rápido que os estados continentais ao objetivo de toda sociedade". Contudo, acrescenta ,em ambos aparece a singularidade essencial da civilização ocidental que é chegar a um governo "capaz de conciliar todos os interesses, todas as forças, de fazê-las viver e prosperar em comum".

Na apresentação da edição brasileira da História da civilização na Europa,Ricardo Vélez Rodríguez indica como Marx tornou-se caudatário da hipótese de Guizot, mas proporcionando-lhe feição totalitária ao contrário do que preconizava o liberalismo doutrinário. Conclui deste modo a apresentação da obra:

"No terreno sócio-político, Guizot considera que a realidade da Europa é constituída pela luta de classes. Nada mais alheio, para ele, à realidade política da França e da Europa, do que o sonho utopista dos que achavam que seria possível uma espécie de entropia política, como se as relações sociais pudessem ser reduzidas uni-linearmente a uma única ordem de interesses. Mas, ao mesmo tempo, o pensador francês é consciente de que a época é a das classes médias, as únicas capazes de dotar a França de instituições livres e estáveis, superando os excessos da revolução e do absolutismo. Ora, essas classes médias identificam-se, na França da Restauração, com a burguesia. Este deve acordar e despertar a sua consciência de que se trata de uma classe chamada a garantir a unidade francesa, fazendo frente à dissolução do Terror e ao anacronismo do Absolutismo bonapartista. Eis aí, formulado claramente o conceito daconsciência de classe. Sem dúvida nenhuma que Marx fez uso desse arcabouço conceitual (luta de classes, consciência de classe, classe habilitada para exercer o domínio na sociedade). Plekhanov,(1) aliás, tinha destacado esse ponto, com rara probidade intelectual que reconhecia ser Marx herdeiro de um liberal-conservador na formulação dos seus conceitos sociológicos chaves. Guizot considera-se o profeta dessa situação histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma política alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que é chamada à responsabilidade histórica, indelegável, de garantir o exercício da liberdade, mediante a criação de instituições que, salvaguardando a ordem, possibilitem o amadurecimento da civilização européia. O pensador francês atribui à burguesia o papel de pregoeira da Verdade histórica.

A burguesia, no sentir de Guizot, deveria garantir as instituições que alicerçam o exercício da liberdade, mediante a organização da representação. Esta consiste, cumulativamente, na luta em prol dos interesses de classe e na tentativa de, mediante a explicitação desses interesses no terreno do discurso, dar ensejo à racionalidade social, que é fruto do entrechoque das opiniões. Desse processo dialético emerge o conceito de representação. Esta seria considerada, quando estabelecido o domínio da burguesia mediante esse processo de explicitação, como a média da opinião. Não há dúvida de que esses conceitos entraram fundo no discurso político do século XIX, tanto na França quanto no Brasil". (Ver também, GUIZOT, François).


(1)  Cf. G. Plekhanov. "Les premières phases d'une théorie: la lutte de classes". In: Oeuvres philosophiques. V. II, Moscou, s.d. (Prefácio à segunda edição russa do Manifesto Comunista). Cit. por Rosanvallon, Le moment Guizot, p. 394. Acerca da influência de Guizot em Marx, escreve Rosanvallon: "Poderá ser observada a atração exercida por Guizot sobre certos teóricos de inspiração marxista, na medida em que ele tinha sido considerado por Marx e Engels como um dos historiadores burgueses que tinham inventado a noção de luta de classes". A respeito, Rosanvallon menciona os seguintes autores, além de Plekhanov: Robert Fossaert, "La théorie des classes chez Guizot et Thierry", in: La Pensée, jan./fev. 1955; B. Reizou, L'historiographie romantique française, 1815-1830. Moscou, s.d.