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Karl Marx deixou obra inacabada
facultando diferentes interpretações

   

A história da filosofia permite comprovar a virtual impossibilidade de estabelecer-se qual seria a verdadeira interpretação dos grandes filósofos. Karl Marx  (1818/1883) não escapa a essa regra. É mais que notória a existência de múltiplas interpretações do marxismo, algumas frontalmente contrapostas a exemplo da que nutre facções do socialismo democrático ocidental em face do totalitarismo presente ao chamado marxismo leninismo.     
    Há entretanto algumas singularidades que cumpre assinalar. Estas é que teriam originado interpretações completamente díspares: na maioria dos casos, a diversidade de interpretações decorre do inacabamento do conjunto de sua obra, que iria deixar em aberto questões nucleares da doutrina.
     Marx deixou mais pressupostos do que seria razoável.
     Por outro lado, certa diversidade na preferência de filósofos, que se consideraram marxistas, provém do fato de que a filosofia contemporânea se tenha desinteressado da intenção sistemática, dando preferência aos problemas.
    No que se refere ao primeiro aspecto, o inacabamento da obra de Marx permitiu que fosse apropriado por tradições arraigadas em determinados países. A motivação do seu sucesso na Rússia difere frontalmente daquela que viria a proporcionar-lhe autêntica hegemonia na cultura francesa.
   Com efeito, é difícil perceber onde se encontra a similitude da versão patrimonialista russa com a versão cientificista francesa. A primeira refletindo plenamente a brutalidade do que Wittfogel denominou de despotismo oriental. A segunda, atuando no sentido de exacerbar o racionalismo tradicional, a ponto de conduzi-lo a reducionismos e simplificações verdadeiramente grotescas.
    No que respeita a filósofos tomados isoladamente, a diversidade decorre, a nosso ver, da especificidade da filosofia contemporânea. Assim, ali onde despertou interesse estritamente filosófico, muito provavelmente a diversidade poderá ser explicada pela preferência do pensador, situação típica da filosofia contemporânea, quando desaparece o propósito de constituir sistemas. No período subsequente à crise provocada pela denúncia do stalinismo --ocorrida na segunda metade da década de cinqüenta do século passado, devida aos próprios soviéticos--, a principal crítica aos denunciantes residirá na acusação de ter pretendido transformar o marxismo num sistema, na suposição de que esta não teria sido a intenção do próprio Marx.
     É pouco provável, entretanto, que Marx desvalorizasse o sistema. Seria mais plausível admitir que entendesse achar-se constituído, em forma definitiva e inultrapassável, a partir de Hegel (1770/1831), seguindo nesse passo, aliás, o que indicara Feuerbach (1804/1872). Sem dúvida alguma, contudo, não o explicitou expressa e claramente. Tudo indica entretanto que, a seu ver, a perenidade do hegelianismo residiria no que chamou demétodo dialético, este sim assumido como componente da doutrina marxista. 
   Hegel é o verdadeiro instaurador da História da Filosofia, entendida como disciplina que considera o conjunto dos filósofos relevantes, e não apenas aqueles que se deseja exaltar, como se dava precedentemente. É certo que nem todos os conceitos se formam pelo confronto de pontos de vista contrários. Mas a presença destes consistia precisamente no principal argumento dos que consideravam a filosofia como achando-se desprovida de coerência interna. É a isto que se passou a entender como método dialético, o que está longe de consistir em reconhecimento exclusivo do marxismo. A diferença reside em que, ao contrário da filosofia acadêmica, os marxistas o têm como exclusivo, ignorando a existência dos métodos socrático e escolástico
    Naquele método estaria formulado o procedimento de que se valeu para construir sua obra fundamental – O Capital – ainda que, como se indicará, tenha mudado de plano sem o confessar. A rigor, tratava-se apenas de reelaborar a proposição hegeliana de forma a proporcionar uma nova visão (proletária; anti-burguesa) do real. Parece legítima a conclusão de Jean Hyppolite  (1907/1968) segundo a qual O Capital estaria destinado a tornar-se a nova Fenomenologia. Tenha-se presente que Hyppolite seria reconhecido como o principal divulgador da obra de Hegel, recorrendo a um de seus textos --o curso da história da filosofia, geralmente negligenciado-- para explicar muitas das obscuridades com que ali se depara o leitor.
    Nessa reconstituição do sistema, para nele inserir a “visão proletária”, o problema parece residir na dialética da natureza. O desenvolvimento experimentado pela ciência, desde os começos do século XX, estava longe de permitir a reconstituição da unidade do espírito, como o entendia a filosofia do século XIX. Isto é, o real se fragmentava de modo crescente. A ciência estava cada vez mais longe de conduzir a uma síntese como acreditavam os filósofos de variada estirpe. Leve-se em conta que a aceitação dessa hipótese abrangia os idealistas, embora a hegemonia dessa vertente  --crença numa síntese do conhecimento com base na ciência-- acabasse por ser assumida, com exclusividade, pelo positivismo.
   Friedrich Engels (1820/1895), herdeiro e continuador da obra de Marx, explicitaria tal convicção (de que a ciência estaria proporcionando um princípio único) e não há porque duvidar de que essa também fosse a crença de Marx. Deste fato resultou que o marxismo preservasse anacronismos oitocentistas, facultando a emergência de versões positivistas e cientificistas.
    Considerado apenas o campo marxista, Rodolfo Mondolfo (1877/1976) e Georg Lukacs (1885/1971) reconheceram tal anacronismo.
    Entre as imprecisões e ambiguidades,   decorrentes do modo como Marx procedeu à elaboração da sua doutrina, sobressai o fato de que não se haja  manifestado sobre o que se denominou de “perspectiva filosófica transcendental” --o reconhecimento devido a Kant e a que se ajustaram os seus seguidores de fins do século XIX e começos do seguinte, isto é os neokantianos-- de que a pessoa humana só tem acesso àquilo que aparece e não ao que estaria “por trás”, como supunham os gregos e escolásticos. Os hegelianos limitaram-se a abandonar o conceito kantiano de “coisa em si”, na medida em que seria, como explicita Hegel, o “inefável”. A par disto, ocupados com o sistema, deixaram de lado a distinção entre o tipo de objetividade característica da ciência (válida universalmente), daquele buscado pela filosofia, onde deverão coexistir diferentes pontos de vista. Essa referência serve para explicitar que se trata de uma questão filosófica essencial, ciosamente evitado por Karl Marx, o que dispensaria seus seguidores de fazê-lo. Como se verá, essa omissão teria conseqüências na sorte do marxismo, mais precisamente, abria o flanco ao cientificismo que, no fundo,, identificda filosofia e ciência..
    Na acepção que passou a ser aceita, no âmbito da perspectiva transcendental, o saber filosófico comportaria ser integrado pela filosofia da ciência. Emergiu mesmo uma corrente que entendeu deveria deter-se nesse patamar, o chamado neopositivismo. À luz desse entendimento, o positivismo e o cientificismo oitocentistas passam a ser considerados como anacrônicos e ultrapassados, o que não impediu que encontrassem guarida em diversos contextos.
   Essa característica e mais o fato de que haja recusado reconhecer o que os homens teriam de comum, antes do que denominou de “ser de classe”, é que terá permitido que o marxismo pudesse ser utilizado na perpetuação de tradições tão diversas como o patrimonialismo ou o cientificismo. O patrimonialismo é a forma pela qual se organizou o Estado russo, ajustando-se o marxismo (na versão leninista), como uma luva, a essa tradição. Dar feição “cientificista” ao marxismo seria obra dos franceses.
    Quando chegou a Paris em fins de 1843, Marx já tinha o espírito formado na esquerda hegeliana, o que se pode comprovar pelo texto fundamental desse período, a Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel. Essa obra registra uma parte do legado hegeliano que o marcaria em definitivo. Temos em vista o empenho no encontro de uma determinação que lhe permitisse tipificar o ser genérico. Do contato com os franceses  resultou que essa determinação fosse definida como se tratando de ser declasse. Aqui residiria uma das fontes da ambiguidade do seu sistema: o homem só existiria após receber o primeiro salário, como afirmaram os críticos franceses do marxismo. Essa lacuna iria refletir-se na impossibilidade de definir um dos conceitos chave a que recorrerá, o de superestrutura.
    Insere-se nesse ciclo a Ideologia alemã, onde o essencial residirá na aceitação de que a base do sistema deverá residir no que Hegel denominou de “sistema das necessidades”, em lugar da “Ideia”, seguindo nesse passo as indicações de  Feuerbach. Adicionalmente, nessa obra Marx inicia a crítica ao entendimento que Feuerbach tinha daquela categoria, isto é, do “sistema das necessidades”, mas só muito mais tarde indicará que coloca em seu lugar o modo de produção. A formulação acabada e definitiva desse conceito aparecerá na Contribuição  à crítica da economia política (1859).
   No período inglês, Marx dedicar-se-á basicamente a elaborar a novaFenomenologia – isto é, O Capital. Ao fazê-lo, partindo do que aprendera com os franceses -- a existência da luta de classes, o papel revolucionário do proletariado e o fato de que o capitalismo repousava na sua exploração --, procede a uma descoberta genial, se nos ativermos à perspectiva transcendental no seu desdobramento Kant-Hegel, isto é, que se trata da constituição da objetividade, efetivada no pressuposto da existência de categorias ordenadoras do real. Temos em vista a categoria força de trabalho. Traz para o plano social um conceito proveniente do estudo da natureza, o de forçacomplementando-o com uma dimensão exclusivamente humana (o trabalho). Atende perfeitamente à exigência hegeliana de que a idéia possa identificar-se com o concreto (por oposição a discreto; capaz de operar como síntese). 
    Para ater-se a esse plano, Marx teria que limitar a sua análise, como fizera até então, à evolução dos conceitos devida aos antecessores. A consideração da “força de trabalho” inauguraria um novo patamar.
     Ao invés de ater-se exclusivamente a esse plano categorial, Marx se dispõe a introduzir a medida, o que nunca conseguiu, impossibilitando-o de concluir a obra que considerava fundamental. Ora, a “medida” é do âmbito da ciência experimental. Ainda que, na prática, Marx haja abandonado tal investigação – abandono que se comprova pelo  caráter inconcluso, fragmentário e incompleto dos manuscritos que Engels reuniu para formar o volume subsequente àquele em que trata do processo de constituição do capital – essa incursão alimentou a vertente cientificista de interpretação do legado de Marx, que se revelou verdadeiramente imbatível, em que pese a  sua mais flagrante inconsistência.
   Nesta mesma fase, Marx irá debruçar-se sobre o conceito de Estado. NaIntrodução à crítica da filosofia do Direito de Hegel esta é também uma questão chave. Ali valoriza a tripartição do poder, recusa a crítica de Hegel ao Poder Legislativo e se encaminha na direção da  defesa do sufrágio universal. Seguirá orientação inteiramente diversa nos textos que dedicará ao que entendeu como aparecimento do proletariado, numa posição independente, na luta de classes em França, culminando com a Crítica ao Programa de Gotha (1875). 
   Neste documentos, Marx lança as bases do que viria a ser uma das versões mais agressivas do totalitarismo, emergente no século XX, o bolchevismo.
    Nos textos dedicados à França, é flagrante a idealização do contingente social a que corresponderia o operariado industrial. Naquele país, a Revolução Industrial estava longe de haver constituído proletariado concentrado em grandes empresas, sendo estas inexistentes. Mais que isto. Obscureceu o fato da Comuna de Paris ter consistido, sobretudo, num movimento militar, promovido pela Guarda Nacional, e admitiu que teria fornecido o modelo do que seria a ditadura do proletariado, isto é, um governo centralizado, onde não mais existia tripartição e independência dos poderes. Não sobreviveu o bastante para encontrar o seu Robespierre, mas Lenine, tendo percebido claramente qual seria o desfecho, seguiu de perto essa diretriz.   
   Portanto, em matéria de doutrina do Estado, não há ambiguidades em Marx.
   No que respeita à doutrina da sociedade, o ensinamento é claro: a ciência social (não adotou o nome comteano que não era então aceito sem reservas) deve achar-se a serviço da implantação do comunismo. Não chegou a desenvolver essa parcela do marxismo, entendendo talvez que deveria ser precedida de um arcabouço filosófico, que se encontraria em O Capital. Entretanto, a França se incumbiu de fazê-lo: o que passou à história com o nome de sociologia francesa constitui a formulação acabada do que Marx resumira em duas páginas da Contribuição à crítica da economia política, sem jamais voltar ao assunto.
     Como O Capital não se concluiu, nem na parte que se publicou insere uma opção clara por uma investigação de natureza filosófica, o marxismo ficou sem a sua Fenomenologia. A par disto, a ação política de Marx assumiu nitidamente natureza messiânica ao pretender que se tratava detransformar o mundo – e não simplesmente interpretá-lo, como se dava com os filósofos que o precederam.
    Essa apresentação esquemática da forma pela qual o caráter inacabado da obra de Marx  contribuiu para estruturar as principais interpretações, explica de modo suficiente a diversidade das interpretações russa e a francesa, calcadas em tradições culturais bastante diversas. O certo é que, sem levar em conta a diversidade e o caráter arraigado das duas tradições culturais --patrimonialismo, no caso russo, e cientificismo, no francês--  torna o fenômeno inexplicável .
     Na oportunidade da abordagem daquilo a que corresponderia a filosofia marxista não se pode perder de vista que a denominada  vulgata  tornou-se a nota dominante, graças à máquina de propaganda implantada pelos soviéticos. Dada a inconsistência --e ao caráter verdadeiramente primário de suas teses centrais--, somente encontrou acolhida onde setores importantes da cultura sofreram influência positivista, como é o caso do Brasil.                                                                                            
     Na filosofia contemporânea apareceram também marxistas independentes, a exemplo de Mondolfo e Lukacs, antes referidos. Contudo, sem contar com o beneplácito do Kremlim, não deixaram maiores marcas no mundo acadêmico. No plano político, os chamados “revisionistas”, a exemplo de Kautsky e Bernsteiun, tiveram melhor sorte.