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Miguel de Cervantes (1547/1616), nascido na Espanha, viveu na Itália onde, entre outras coisas, alistou-se nas tropas que deviam enfrentar a invasão turca, tendo participado da famosa batalha de Lepanto, na qual perdeu a mão esquerda. Em seu regresso à Espanha caiu prisioneiro dos turcos, condição em que viveu durante cinco anos, quando os familiares conseguiram a quantia exigida pelo resgate, forma habitual, na época, pela qual era negociada a liberdade de prisioneiro de guerra. Chegado finalmente á Espanha ainda permanece como militar durante algum tempo, radicando-se em seguida em Madrid. Exerceu funções públicas, sendo nessa fase da vida que escreveu Dom Quixote, cuja primeira parte foi editada em 1605 e, a segunda, dez anos depois. Somente após a sua morte teria o seu talento reconhecido. Escreveu também obras teatrais e outras novelas, como então se denominava o gênero literário de sua obra capital.

Dom Quixote é uma obra satírica, destinada a ridicularizar as novelas de cavalaria, gênero dominante durante a Idade Média e que ainda contava com grande popularidade em seu tempo. Embora o Renascimento, em pleno curso, viesse suscitando uma nova valoração, os valores da cavalaria foram vivenciados pela elite governamental durante séculos e não poderiam desaparecer de chofre. No período em que viveu Cervantes, o Rei da França, Henrique II (1519/1559), faleceu em decorrência dos ferimentos recebidos numa justa (combate entre dois cavaleiros armados de lança, geralmente para homenagear alguma dama ou simplesmente disputá-la).

Alonso Quijano (ou Quesada, não se sabe direito), aficionado à literatura cavaleiresca, de que lera tudo e possuía uma vasta biblioteca, enlouqueceu e passou a supor que era  o cavaleiro Dom Quixote. Encontra um nome adequado para a sua montaria (Rocinante) e consegue que um visinho aceite a condição de escudeiro (Sancho Pança), inventa uma dama à qual dedicaria os seus feitos (Dulcinéia) e sai para o mundo numa excursão desarvorada e hilariante. Ao deparar-se com qualquer situação, fantasia logo um correlato com o que aprendera nas suas leituras.

Numa certa altura diz ao escudeiro; “A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar”. E lá vai o nosso herói disposto a enfrentar nada mais nada menos do que quarenta gigantes. Em vão Sancho Pança o advertirá de que se trata na verdade de moinhos de vento. “Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro que vos investe”. “...com a lança em riste arremeteu contra o primeiro moinho que estava diante, e dando-lhe uma lançada na vela, o vento a volveu com tanta fúria que fez a lança em pedaços, levando desastradamente cavalo e cavaleiro, que foi rodando miseravelmente pelo campo fora.” Nessa e em todas as circunstâncias o nobre cavaleiro encontrará uma explicação para o desastre. E prosseguirá incólume em busca de despojos que os fará enriquecer, além de que “é boa a guerra e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.”

Ainda que o livro de Cervantes haja suscitado muitas interpretações que a consideram uma espécie de síntese da vida humana, dividida entre o sonho e a realidade, cabe lê-lo de forma descontraída, a fim de colher todo o prazer que pode proporcionar. Tendo já tomado contato com os textos mais renomados da novela cavaleiresca, é possível dar-se conta de como uma geração à cata de valores chegou a considerar ridículos os feitos heróicos ali relatados. (Ver também A Canção de Rolando)


No século XVI, o chamado Império otomano (turco) alcança sucessivas vitórias na Europa, ocupando o território correspondente à Romênia, Bulgária, Grécia e parte da Hungria, chegando a ameaçar Viena. A batalha de Lepanto (1571) marca o estancamento de sua expansão. A libertação dessa parte da Europa demora séculos, somente se concluindo nos começos do século XX.

Num texto muito festejado, o jurista e político brasileiro San Tiago Dantas considerou que Dom Quixote retrataria a situação dos ocidentais cujo progresso repousaria no culto de sucessivas utopias (Dom Quixote: um apólogo da alma ocidental).