D

O discurso em apreço foi pronunciado em 1919 e retrata bem o desapreço que o fundador do Estado Soviético nutria em relação à democracia e, em geral, às conquistas legais no que respeita às liberdades individuais (de consciência, de associação etc.) bem como à liberdade de imprensa, do mesmo modo que à igualdade perante a lei, que, no Ocidente, foi sendo progressivamente estendida à área social. Como se verá, a argumentação tangencia o essencial.

Lenine começa tentando justificar o não cumprimento da promessa de estabelecer a paz, lançando toda a responsabilidade sobre os outros. Tendo recusado o caminho aberto pela Assembléia Constituinte (dissolvida logo no início do seu governo), que teria permitido o funcionamento de instituições que facultariam a negociação pacífica entre os interesses conflitantes, não deixou a seus oponentes outra alternativa senão a guerra civil. Exclama: “Quem quer que tenha pretensões ao nome de democrata ou de socialista de qualquer matiz e lança entre o povo, de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, a acusação de que os bolcheviques prolongam a guerra civil, uma guerra penosa, uma guerra dolorosa, quando prometiam a paz, é um partidário da burguesia, e nós responder-lhe-emos assim: pôr-nos-emos contra ele como fizemos com Koltchak”.(1)  Cita em seguida a exclamação de um jornal social revolucionário (partido que fez a maior bancada na Assembléia Constituinte, gozando de imensa popularidade no campo), nestes precisos termos: “Mas nós não estamos com Koltchak; é uma injustiça gritante perseguir-nos” e responde simplesmente que atribuir aos bolcheviques a responsabilidade pela guerra civil é fazer o jogo daquele grande inimigo, devendo ser tratado como tal.

Refere também as críticas de Kautski e, em geral, dos socialistas europeus, quanto ao caráter ditatorial do regime soviético e vai considerar o tema do ângulo da liberdade. Sua argumentação é simplista e até pueril como se pode ver da transcrição adiante:
“Esses franceses, ingleses e americanos civilizados chamam liberdade, digamos, à liberdade de reunião. Na Constituição deve estar escrito: “Liberdade de reunião para todos os cidadãos”. “Tal é”, dizem eles, “o conteúdo, tal é a manifestação fundamental da liberdade. E vós, bolchevique, violastes a liberdade de reunião”.

Sim, respondemos nós, a vossa liberdade, ingleses, franceses, americanos, é um logro se ela contraria a libertação do trabalho do jugo do capital. Vós esquecestes um pequeno pormenor, senhores civilizados. Esquecestes que a vossa liberdade está inscrita numa Constituição que legitima a propriedade privada. Eis onde está o fundo da questão”.

Alega em seguida que as grandes salas, onde é possível tornar realizável aquela prerrogativa, “pertencem aos capitalistas e aos latifundiários e chamam-se, por exemplo, salas da “assembléia da nobreza”. Podeis reunir-vos livremente, cidadãos da república democrata da Rússia, mas isto é propriedade privada, senão sereis bolcheviques, criminosos, bandidos, ladrões, malvados. E nós dizemos: “Vamos inverter isto. Primeiro vamos transformar este edifício de assembléia da nobreza em edifício das organizações operárias, e depois falamos da liberdade de reunião”.
Com efeito, na Rússia Soviética tudo foi estatizado mas também os sindicatos, cuja liberdade, nos setenta anos em que o regime funcionou, limitou-se a aplaudir o ditador de plantão e seus acólitos.

No tocante à igualdade escreve o seguinte:

“Engels tinha mil vezes razão quando escreveu: o conceito de igualdade é um preconceito estúpido e absurdo à margem da supressão das classes. Os professores burgueses tentaram, a propósito da noção de igualdade, acusar-nos de querermos tornar cada homem igual aos outros. Eles tentaram acusar os socialistas desse absurdo, por eles próprios inventado. Mas eles não sabiam, dada a sua ignorância, que os socialistas – e concretamente os fundadores do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels – diziam: a igualdade é uma frase oca se não se entender por igualdade a supressão das classes. Nós queremos suprimir as classes, e nesse sentido somos a favor da igualdade. Mas pretender que nós tornamos todos os homens iguais uns aos outros é uma frase oca e uma tola invenção de intelectual que, por vezes honestamente, faz trejeitos e alinha palavras sem conteúdo – quer ele se chame a si próprio escritor, por vezes cientista ou seja o que for”.

Mas logo Lenine esbarra com o problema do campesinato que representava a imensa maioria da população russa. A classe proprietária urbana, independentemente das dimensões do seu negócio, foi expropriada e perseguida. Os que não conseguiam emigrar foram simplesmente fuzilados. Não só suas empresas como as próprias casas foram ocupadas. Mas, e os camponeses? Como se explica que os bolcheviques os tratem com mão de ferro, confiscando suas colheitas e igualmente fuzilando-os ao menor sinal de resistência?

O próprio Lenine reconhece a dificuldade em que se encontra. Veja-se como a enfrenta. Escreve: “E aqui abordamos a questão que suscita mais reprovação por parte dos nossos inimigos, que gera mais dúvidas entre as pessoas inexperientes e irrefletidas e que mais nos separa daqueles que querem considerar-se democratas, socialistas, e que se ofendem conosco porque não os consideramos nem democratas nem socialistas e lhes chamamos partidários dos capitalistas, talvez por ignorância, mas partidários dos capitalistas.

A situação do camponês, pelos seus costumes, pelas suas condições de produção, pelas condições da sua vida, pelas condições da sua economia, faz do camponês meio trabalhador, meio especulador.

Isso é um fato. E não escapareis a este fato enquanto não eliminardes o dinheiro, não eliminardes a troca. Mas para o fazer são precisos anos e anos de dominação estável do proletariado, porque só o proletariado é capaz de vencer a burguesia. Quando nos dizem: “Vós sois violadores da igualdade, vós violastes a igualdade não apenas com os exploradores – com isso eu talvez ainda esteja de acordo, declara um qualquer socialista-revolucionário ou menchevique, sem compreender o que diz – mas violastes a igualdade dos operários com os camponeses, violastes a igualdade da ‘democracia do trabalho’, sois uns criminosos!” Nós respondemos: “Sim, nós violamos a igualdade dos operários com os camponeses e afirmamos que vós, que defendeis essa igualdade, sois partidários de Koltchak”.

As eleições para a Assembléia Constituinte realizaram-se em novembro, coincidindo sua posse com o golpe de Estado que levou os comunistas ao poder. Estes não tiveram condições de impedi-la, valendo a pena referir a circunstância por se achar relacionada ao tema precedente.

Compareceram às eleições 36 milhões de eleitores. O grande vitorioso seria o Partido Social Revolucionário, que era forte em todo o país, enquanto a base dos bolcheviques limitava-se às cidades (tinham também uma forte organização no Exército e na Armada, embora numericamente inferior à dos sociais revolucionários). Os sociais revolucionários alcançaram 58% dos votos e fizeram maioria na Assembléia (267 deputados num, total de 520). Os “cadetes” – liberais, assim chamados porque a sigla Partido Constitucional Democrata, em russo, correspondia à palavra Kadiet – conseguiram 13% e os bolcheviques 25%. Dos 4,5 milhões de votantes no Exército e na Armada, os sociais revolucionários tiveram apoio de 1,9 milhão e os bolcheviques de 1,8 milhão.

A Assembléia Constituinte instalou-se e elegeu como presidente um dirigente do Partido Social Revolucionário. Nesse mesmo dia foi aprovada a reforma agrária. A terra deveria ser confiscada à nobreza, que detinha a sua propriedade, e distribuída aos camponeses. Os bolcheviques eram absolutamente contrários a tal medida porquanto pretendiam a sua estatização.

Os bolcheviques abandonaram a Constituinte nesse primeiro e único dia de seu funcionamento e, na mesma noite, promulgaram um decreto dissolvendo-a, ocupando militarmente as suas instalações e prendendo os que esboçaram qualquer espécie de resistência.

Acontece que os sociais revolucionários tinham controle sobre grande número de Soviets(1) e expressiva representação no Congresso, dessas organizações que tomou o poder, que se viu na contingência de aceitar a reforma agrária.

No desdobramento das relações do Estado Soviético com o campesinato, foram liquidados fisicamente os que se enriqueceram concentrando a propriedade em seguida à reforma – calcula-se que foram mortos dez milhões de kulaks, nome russo que os designava –, obrigados os camponeses a se organizarem em fazendas coletivas (kolkojes) mas facultando-lhes o acesso a uma propriedade individual, em comum com os habitantes de uma mesma aldeia. Essas propriedades individuais chegaram a corresponder a mais de 50 milhões de hectares (quando o país se reconstituiu depois da guerra, havia 26 milhões de famílias no campo, cada uma detendo em média 2 hectares), que acabaram respondendo pela oferta da parcela fundamental dos gêneros de consumo alimentar (as fazendas estatais – denominadas de sovkojes, do mesmo modo que grande número dekolkojes, especializaram-se em determinadas culturas técnicas). As colheitas individuais passaram a dispor, igualmente, da prerrogativa de vender seus produtos em mercados livres nas cidades.

Outro desmentido implacável da hipótese comunista de que a igualdade adviria da supressão da propriedade privada – e da liquidação física dos burgueses e assemelhados – consistiu no aparecimento da chamadanomenklatura, isto é, das pessoas que assumiram o poder no novo regime. Acabaram se transformando numa casta de privilegiadas, enquanto a imensa maioria, segundo se pôde comprovar com o fim do regime, vivia em condições consideradas, a partir de padrões ocidentais, abaixo da linha de pobreza, verdadeiros indigentes, conforme se pode ver agora, na televisão, com a vigência da liberdade de imprensa. A fim de expressar o caminho seguido pela nomenklatura para justificar seus privilégios, George Orwell (1903-1950) em sua famosa obra satírica denominada Animal Farm – aliás numa linha de argumentação muito próxima da seguida por Lenine no texto que vimos acompanhando – avançou a tese segundo a qual “todos são iguais mas alguns são mais iguais do que os outros”. (Ver também LENINE, Vladimir Ilitich).

(1) Alessandr Vassilievitch Koltchak (1874-1920), almirante russo que liderou a oposição armada ao Estado Soviético, tendo organizado um governo em Omsk, na Sibéria. Derrotado pelo Exército vermelho, foi fuzilado.

(1) Soviet em russo significa Conselho. Tratava-se de uma organização que surgiu espontaneamente no Exército em guerra, congregando soldados e demais subalternos, experiência que os comunistas trataram de generalizar, constituindo nas cidades Soviets de Operários. No desenrolar dos acontecimentos que se seguiram à queda da monarquia (fevereiro de 1917), os comunistas lançaram a palavra de ordem de “Todo o Poder aos Soviets”.  Para torná-la realidade é que realizaram um congresso nacional a 25 de outubro (com a mudança de calendário, decorrente da adoção do vigente no Ocidente, essa data passou a ser 7 de novembro. Mas seguiu-se denominando àquele golpe de Estado de “Revolução de Outubro”).