A

L’Ancien Régime et la Révolution corresponde, na agitada vida intelectual de Tocqueville, à obra da maturidade. A sua elaboração foi, no espírito do nosso autor, um bálsamo para as feridas morais causadas pela decepção que lhe causara a participação política com os rumos tomados pela revolução de 1848. O período de maturação da obra foi longo.

O plano detalhado de L’Ancien Régime et la Révolution foi elaborado em dezembro de 1850, em Sorrento, na Itália, onde Tocqueville permaneceu até março de 1851, se recuperando de uma crise de tuberculose, doença que lhe causaria a morte anos mais tarde, em 1859. Ao longo de 1852, o nosso autor começou o seu trabalho de busca e organização de documentos, tendo realizado, também, uma enquête na Normandia. O trabalho de pesquisa continuou em 1853 em Tours, onde o nosso autor estudou os Arquivos da Intendência relativos ao século XVIII. Em 1854, entre os meses de julho e setembro. Tocqueville viajou à Alemanha, onde, em Bonn principalmente, estudou as características da feudalidade. Ao longo de 1855 o autor deu forma final à obra, que apareceu publicada em junho de 1856 pelo editor Michel Levy, de Paris.

São as seguintes as finalidades perseguidas por essa obra: a) explicar por que a Revolução, que já se preparava em outras partes da Europa, eclodiu primeiro na França; b) entender por que os franceses, que deflagaram a Revolução em nome da liberdade, abandonaram cedo esse ideal; c) comprovar por que as mudanças efetivadas pela Revolução Francesa, já estavam presentes, de forma imperceptível, no Antigo Regime; d) alertar os seus contemporâneos, à luz da análise feita, para os riscos que corria a liberdade na França de meados do século XIX.

Qual foi o fenômeno que Tocqueville considera essencial na vida política da sociedade francesa da segunda parte do século XVIII? Sem dúvida alguma que esse fenômeno consistiu na centralização. O nosso autor o comprova a partir da vasta documentação mobilizada. Escreve: (...) “Um estrangeiro – escreve (Tocqueville – ao qual fossem liberadas hoje todas as correspondências confidenciais que estavam contidas nos bilhetes do ministério do interior e das prefeituras, saberia muito mais sobre nós do que nós mesmos. No século XVIII, a administração pública já era (...) muito centralizada, muito poderosa, prodigiosamente ativa. Vê-la-íamos ajudar sem cessar, impedir, permitir. Tinha muito para prometer e muito para dar. Influenciava já de mil maneiras, não somente no andamento geral dos negócios, mas também na sorte das famílias e na vida privada de cada homem. De resto, permanecia sem publicidade, o que fazia que as pessoas não tivessem medo de vir a expor aos seus olhos até as
doenças mais secretas (...)

O que mais incomodava ao nosso autor era o efeito político que o centralismo terminara causando na sociedade francesa: o despotismo. O centralismo tirava da sociedade a sua iniciativa e a transformava em eterno menor de idade perante o Estado todo-poderoso. O grande mal causado à França pelo centralismo era antigo, no sentir de Tocqueville. A substituição paulatina do velho direito consuetudinário germânico pelo direito romano, situavase nas origens de todos os males e era como que a fonte jurídica do processo centralizador que se alastrou depois a todos os aspectos da vida social. O despotismo é, na sua essência, centralizador. Acaba com as solidariedades locais e torna insensíveis os cidadãos às comuns desgraças e necessidades. Descreve, de forma detalhada, o efeito deletério do despotismo, naquelas sociedades que, como a francesa, foram niveladas pelo centralismo avassalador do rei e os seus intendentes.

Afirma: “Não havendo mais entre os homens nenhum laço de castas, classes, corporações, família, ficam por demais propensos a só se preocuparem com os seus interesses particulares, a só pensar neles próprios e a refugiar-se num estreito individualismo que abafa qualquer virtude cívica. Longe de lutar contra esta tendência, o despotismo acaba tornando-a irresistível, pois tira aos cidadãos qualquer paixão comum, qualquer necessidade mútua, qualquer vontade de um entendimento comum, qualquer oportunidade de ações em conjunto, enclausurando-os, por assim dizer, na vida privada. Já tinham a tendência a separar-se: ele os isola; já havia frieza entre eles: ele os congela”.

O que Tocqueville afirmava do centralismo despótico, aplicava-se, em primeiro lugar, à França revolucionária. Em que pese o fato das juras libertárias dos jacobinos, no entanto a Revolução terminou sendo deglutida pelos velhos hábitos centralizadores e despóticos. O nosso autor cita, para confirmar esta apreciação, as palavras que Mirabeau escrevia secretamente ao rei, menos de um ano depois de ter eclodido a Revolução: “Comparemos o novo estado das coisas com o antigo regime; lá nascem os consolos e as esperanças. Uma parte dos atos da Assembléia Nacional – a mais considerável – é evidentemente favorável ao governo monárquico. Não significará nada ser sem parlamento, sem governo de Estado, sem corpo de clero, de privilegiados, de nobreza? A idéia de formar uma só classe de cidadãos teria agradado a Richelieu: esta superfície igual facilita o exercício do poder. Alguns reinos de um governo absoluto não teriam feito tanto em prol da autoridade real quanto este único ano de Revolução”.

Arguto e crítico observador do fenômeno revolucionário, Tocqueville comenta as palavras de Mirabeau, destacando o caráter cosmético da Revolução de 1789, no que tange ao despotismo centralizador. O processo revolucionário fez ruir um governo e um reino, mas sobre as suas cinzas ergueu um Estado muito mais poderoso que o anterior. “Como o objetivo da Revolução Francesa – escreve o nosso autor – não era tão-somente mudar o governo mas também abolir a antiga forma de sociedade, teve de atacar-se, ao mesmo tempo, a todos os poderes estabelecidos, arruinar todas as influências reconhecidas, apagar as tradições, renovar os costumes e os hábitos e esvaziar, de certa maneira, o espírito humano de todas as idéias sobre as quais se assentavam até então o respeito e a obediência. De lá, seu caráter tão singularmente anárquico.

Mas afastemos estes resquícios – prossegue Tocqueville – e perceberemos um poder central imenso que atraiu e engoliu em sua unidade todas as parcelas de autoridade e influência antes disseminadas numa porção de poderes secundários, de ordens, de classes, profissões, famílias e indivíduos, por assim dizer espalhados em todo o corpo social. Não se tinha visto no mundo um poder semelhante desde a queda do Império Romano. A Revolução criou esta nova potência ou, melhor, esta saiu das ruínas feitas pela Revolução. Os governos que fundou são mais frágeis, é verdade, porém são cem vezes mais poderosos que qualquer um daqueles que derrubou (...). Foi desta forma simples, regular e grandiosa que Mirabeau já entrevia atrás da poeira das velhas instituições meio destruídas. Apesar de sua grandeza, o objeto ainda era invisível para os olhos da multidão: mas, pouco a pouco, o tempo foi expondo este objeto a todos os olhares (...)”. (Ver também TOCQUEVILLE, Alexis).