Seis
                                                    livros da República,
                                                de Bodin
                                                
                                                Os principais estudiosos da política
                                                costumam proclamar que o pensamento
                                                autoritário desempenhou
                                                papel significativo na estruturação
                                                do Estado Moderno. Este, ao promover
                                                a centralização
                                                do poder, constitui absoluta
                                                novidade na Europa em vias de
                                                sair do feudalismo, onde a autoridade
                                                se disseminava por grande número
                                                de instâncias. Dentre os
                                                instituidores daquela espécie
                                                de pensamento, sobressai Jean
                                                Bodin (1530-1596).
                                                
                                                Quando publicou os Seis livros
                                                da República, em
                                                1576, aos 46 anos de idade, Bodin
                                                já  gozava da reputação
                                                de grande erudito na Corte Francesa
                                                e nos meios intelectuais de outros
                                                países europeus. Havia
                                                publicado, em 1566, Método
                                                para facilitar o conhecimento
                                                da história,
                                                em latim, e logo a seguir um
                                                texto sobre economia, tendo ambos
                                                encontrado acolhida favorável
                                                entre os estudiosos. Depois de
                                                ter sido professor de Direito,
                                                Bodin ingressa na Magistratura.
                                                Elegeu-se para os Estados Gerais.
                                                Escrita em francês, A
                                                República foi traduzida
                                                em diversas partes da Europa
                                                e sucessivamente reeditada na
                                                França.
                                                
                                                Bodin trata com erudição
                                                dos diversos temas políticos
                                                preservados da herança
                                                clássica, como a questão
                                                das formas de governo e as razões
                                                da sua preferência, o que
                                                leva à ruína, etc.
                                                Mas tudo isto de forma exaustiva
                                                e aparentemente desordenada.
                                                Resumindo o seu conteúdo,
                                                escreve Jean-Jacques Chevallier:
                                                
  “O índice desses seis livros, que abrangem quarenta e dois capítulos
  impressionantes, desanimadores, principalmente para quem deixa os capítulos
  incisivos de O Príncipe, é de aturdir o mais intrépido
  leitor. A família, a autoridade marital, a autoridade paternal, a escravatura,
  o cidadão, o súdito, o estrangeiro, o asilado, os tratados e
  alianças, o príncipe tributário, feudatário, soberano;
  a soberania e suas verdadeiras características; as diversas espécies
  de Repúblicas; Monarquia tirânica, monarquia senhorial, Monarquia
  real, o Estado aristocrático, o Estado popular; o Senado, os oficiais,
  comissários, magistrados, os corpos, colégios, Estados e comunidades;
  as finanças e as moedas; as penas; a justiça distributiva, comutativa
  e harmônica; a origem, desenvolvimento, florescência, decadência
  e ruína das Repúblicas; as transformações ou revoluções
  das Repúblicas e os meios de prevê-las ou de remediá-las;
  a maneira de ajustar a forma da República à  diversidade dos
  homens, e o meio de conhecer a índole dos povos – tudo ali se
  encontra ... E mais que tudo! Enciclopédia, desordenada ou não
  (os mais fervorosos bodinistas nela descobrem rigorosa ordem e é preciso
  dar-lhes crédito); testamento enciclopédico do mais enciclopédico
  dos cérebros franceses, europeus, num século voltado, mais do
  que qualquer outro precedente, ao Conhecimento, a seus perigos...”
  
                                                Seu tema, entretanto, é a
                                                soberania. Ainda na palavra do
                                                próprio Chevallier: “Desse
                                                mar de idéias, de arrazoados,
                                                de fatos, de textos e de comentários,
                                                emerge uma ilha central, banhada
                                                de viva luz que lhe realça
                                                os nítidos contornos de
                                                mármore: é a soberania” (As
                                                grandes obras políticas
                                                de Maquiavel a nossos dias.
                                                Trad. Brasileira, Agir, 3ª ed.,
                                                1986, p. 52-3).
                                                
                                                Acostumados a viver sob a égide
                                                de uma autoridade investida da
                                                exclusividade do direito de exercer
                                                a coação, o tema
                                                de Bodin à primeira vista,
                                                pode parecer-nos abstrato. No
                                                quadro político da época,
                                                tratava-se, entretanto, de estabelecer
                                                tal princípio.
                                                
                                                Na França, a luta religiosa
                                                assumira características
                                                radicais, sendo a intolerância
                                                nutrida de parte a parte. Católicos
                                                e protestantes recusavam-se ambos
                                                a admitir a existência
                                                uns dos outros. Em 1562, foi
                                                permitido aos protestantes a
                                                realização de seu
                                                culto em igrejas abertas ao público,
                                                a exemplo do que ocorria com
                                                os católicos. Estes promoveram,
                                                então, a chacina dos calvinistas
                                                que realizavam um ato religioso
                                                em Granja de Vassy. Essa matança
                                                dá início às
                                                guerras religiosas, que duram
                                                nada menos que três decênios,
                                                marcadas por acontecimentos dramáticos,
                                                como a denominação Noite
                                                de São Bartolomeu,
                                                em 1572, quando foram assassinados
                                                os principais líderes
                                                reformadores. Apenas em Paris,
                                                morreram mais de duzentas pessoas.
                                                
                                                Como reação à matança
                                                de São Bartolomeu, os
                                                calvinistas criam um verdadeiro
                                                Estado Protestante dentro do
                                                Estado Francês. Dois reis
                                                foram assassinados – Carlos
                                                IX em 1574 e Henrique IV em 1610.
                                                As potências européias
                                                ajudavam abertamente os dois
                                                lados. A capitulação
                                                dos protestantes só será conseguida
                                                por Richelieu – chefe do
                                                Conselho do Rei, de 1624 a 1642 –,
                                                em 1628. Na Europa continental,
                                                somente com o Tratado de Westfalia
                                                (1648) extinguem-se as guerras
                                                religiosas.
                                                
                                                O confronto indicado apresentava
                                                aspecto político relevante.
                                                Os protestantes enfileiravam-se
                                                sucessivamente do lado do sistema
                                                que no período subseqüente
                                                denominou-se de representativo.
                                                Exigiam que o monarca fosse eleito
                                                por delegados escolhidos nas
                                                Cortes, a exemplo do que ocorria
                                                nas Confederações
                                                Germânicas. Tal exigência
                                                era entendida como um obstáculo à consolidação
                                                do Estado centralizado que se
                                                estava erigindo. Tanto assim
                                                que, na França, depois
                                                de se reunirem em 1614, os Estados
                                                Gerais não mais são
                                                convocados.
                                                
                                                A par disso, a tradição
                                                medieval fixara uma grande autonomia
                                                para os vassalos, inclusive em
                                                matéria de paz e guerra.
                                                Agora pretende-se que a tarefa
                                                de garantir a paz entre os súditos
                                                de um reino bem como de congregá-los
                                                para os conflitos externos se
                                                constituía numa prerrogativa
                                                do soberano. Este quer exclusividade
                                                na intervenção
                                                em todas as questões.
                                                Por isto, a manutenção
                                                de Forças Armadas deve
                                                ser um direito seu.
                                                
                                                Vê-se pois que o tema de
                                                Bodin é muito concreto.
                                                Seu esforço estará direcionado
                                                no sentido de demonstrar que
                                                tal atribuição
                                                de soberania ao Monarca é inerente à própria
                                                noção de comunidade
                                                política. Escreve Chevallier:
                                                
  “Assim como o navio não é mais do que madeira informe quando
  se lhe tira a quilha, que sustém o costado, a proa, a popa e o convés,
  também a República, sem poder soberano, que une todos os
  membros e partes da mesma, e todos os lares e colégios num só corpo,
  não é mais República”. Desde que Bodin trata desta
  soberania, da qual os juristas romanos possuíam tão enérgico
  e majestoso sentimento (chamavam-se majestas), seu vigor dialético
  torna-se insuperável. Ele tem consciência de circular em seu domínio
  predileto, de expandir-se em terras de erudição, a ele reservadas
  desde toda a eternidade. Com que altivez observa “que há necessidade
  de formar a definição de soberania”, porque nenhum jurisconsulto
  ou filósofo político a definiu, embora seja este o ponto principal
  e mais necessário a ser compreendido no tratado da República!
  Não menos desdenhosamente, assinala que, antes dele, ninguém
  soube evidenciar, com rigor, as verdadeiras características da soberania,
  as que permitem aos súditos reconhecer o seu verdadeiro titular.
  
                                                A soberania é a força
                                                de coesão, de união
                                                da comunidade política,
                                                sem a qual esta se destacaria.
                                                Ela cristaliza o intercâmbio
                                                de “comando e obediência”,
                                                imposto pela natureza das coisas
                                                a todo grupo social que quer
                                                viver. É o “poder absoluto e perpétuo de
                                                uma República”.
                                                
                                                O absolutismo monárquico
                                                de Bodin não se quer confundir
                                                com o despotismo (então
                                                denominado de tirania). Defende
                                                a monarquia real e legítima,
                                                onde os súditos obedecem às
                                                leis do Monarca e este às
                                                leis da natureza. Assim, não
                                                se trata de soberania ilimitada
                                                ou sem limites morais. Admite
                                                e exige um Conselho Permanente
                                                (a que denomina de Senado ou
                                                Parlamento) e mesmo Estados Gerais
                                                como órgãos de
                                                conselho periódico. Nenhuma
                                                dessas associações,
                                                contudo, pode fazer qualquer
                                                sombra à soberania do
                                                Monarca, que é sagrada. “Nada
                                                havendo de maior sobre a terra,
                                                depois de Deus, escreve, que
                                                os príncipes soberanos,
                                                e sendo por Ele estabelecidos
                                                como seus representantes para
                                                governar os outros homens, é  necessário
                                                lembrar-se de sua qualidade,
                                                a fim de respeitar-lhes e reverenciar-lhes
                                                a majestade com toda a obediência,
                                                a fim de sentir e falar deles
                                                com toda a honra, pois quem despreza
                                                seu príncipe soberano
                                                despreza a Deus, de Quem ele é a
                                                imagem na terra”.
                                               
                                               
                                               
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