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05/2008
Aléxis de Tocqueville (1805/1859)
a recuperação do ideal democrático

Progressivamente, na medida em que se processava a unificação de alguns feudos em torno do que era inicialmente denominado de Ducado – e, só muito mais tarde, Reino --, tornou-se praxe convocar as chamadas Cortes. Acredita-se que se tivessem disseminado na altura dos séculos XII e XIII. A instituição era constituída por representantes dos três grupos sociais relevantes na época: clero, nobreza e burgueses, estes entendidos como a elite dos burgos (aglomerados urbanos), geralmente comerciantes. Cabia às Cortes, basicamente, aprovar os impostos. Muitas Cortes tiveram a incumbência de reconhecer e empossar novos titulares. Na medida em que se vão formando as nações, as monarquias prescindem de tais instituições.
A existência de Cortes não configura forma democrática de exercício do poder. A iniciativa de sua convocação era atribuição exclusiva do monarca, bem como os temas a serem ali considerados. A disseminação do Estado Moderno na Europa consolidaria o absolutismo monárquico. De sorte que o ideal democrático seria associado à Revolução Francesa, o que o condenaria ao menosprezo.
Na atualidade, é muito difícil dar-se conta da grande desmoralização da idéia de democracia, ocorrida na primeira metade do século XIX, à vista dos desacertos da Revolução Francesa. De um modo geral, no mencionado período histórico, aquele movimento era avaliado negativamente porquanto nenhum dos ideais que proclamara haviam sido alcançados. A par disto, a desordem instaurada no país era atribuída à democracia, na época  autêntico sinônimo de anarquia e desordem.
O sistema representativo consolidado na Inglaterra durante o século XVIII significara uma expressiva ampliação da elite com ingerência no poder. Ainda assim, estava longe de corresponder a um sistema democrático, embora se tratasse de mecanismo governamental contraposto ao absolutismo monárquico.
De fato, portanto, a Revolução Francesa é que popularizaria a hipótese de sistema político denominado democracia, com base na idealização do Mundo Antigo nessa matéria.
 Como se sabe, a Revolução Francesa teve um curto período de existência da monarquia constitucional (setembro de 1791, quando da proclamação da Constituição, até agosto de 1792), seguindo-se o chamado Governo dos Giordinos (setembro, 1792, a junho, 1793), sob o qual tem lugar a execução do Rei. Entre junho de 1793 e julho de 1794, domina o Terror, funcionando ininterruptamente a guilhotina. Em 1795, o país é dotado de uma nova Constituição, desta vez republicana. Campeia a agitação e a instabilidade até que, em novembro de 1799, ocorre o golpe de Estado de Napoleão Bonaparte. Mais alguns anos e estaria restaurada a monarquia.
Do ponto de vista dos contemporâneos, enquanto o sistema elitista vigente na Inglaterra lograra retirar o país do atoleiro das guerras civis e garantir conjunto expressivo de liberdades públicas (liberdade de imprensa, habeas-corpus, etc.), a democracia – entenda-se a Revolução Francesa – trouxera muitos sofrimentos ao povo francês, se bem tivesse havido inquestionável disseminação da propriedade, no meio rural, seguida da abolição de tributos e encargos de índole medieval. Ainda que na França, sobretudo depois da queda de Napoleão, haja surgido um grupo político (os ultras) decidido a restaurar o Antigo Regime, as simpatias todas confluíram para o sistema liberal, afeiçoado ao inglês, isto é, francamente contraposto ao sistema democrático (Revolução Francesa). Essa vertente proporcionou inclusive elaboração teórica de grande densidade, o chamado liberalismo doutrinário. Mas a questão democrática equivalia a sinônimo de anarquia e desordem, como referimos.
A recuperação da dignidade do ideal democrático seria obra de Alexis de Tocqueville (1805/1859). Deste modo, pode-lhe ser atribuído um papel importante na decisão da liderança liberal de empreender o caminho da democratização desse sistema, fato que teria lugar a partir das últimas décadas do século XIX. Com base em Tocqueville e na própria experiência do processo de democratização da idéia liberal, foi possível fixar a distinção entre democracia e democratismo, este último, como indicamos, devido a Rousseau e que, no século seguinte, ajudaria a engendrar o totalitarismo.
Alexis de Tocqueville nasceu numa tradicional família francesa. Concluiu a Faculdade de Direito de Paris em 1825, aos 20 anos. Durante 1826 e parte de 1827, fez uma viagem de estudos à Itália. Ingressou na Magistratura, como Juiz-Auditor em Versalhes, onde seu pai era prefeito. Vivia-se o chamado período da Restauração, subseqüente à queda de Napoleão.
Em julho de 1830, ocorre a Revolução Liberal, iniciando-se a monarquia constitucional de Luís Felipe. Tocqueville guardará certa distância em relação a esse regime, no qual os liberais doutrinários exercem grande influência.
No ano seguinte (1831), juntamente com seu amigo Gustave de Beaumont (1802/1865), obtém permissão para estudar o sistema penitenciário norte-americano. Nessa viagem de estudos os dois permanecem nos Estados Unidos de maio de 1831 a fevereiro de 1832. De volta à França, Tocqueville demite-se do cargo de magistrado em solidariedade a Beaumont. Este fora afastado da Magistratura por se haver recusado a efetivar, por ter considerá-la indevida, a intervenção do Ministério Público num determinado processo. Essa recusa foi considerada incompatível com a função. 
Os resultados da investigação que ambos levaram a cabo nos Estados Unidos seriam apresentados no livro Du systeme pénitenciaire aux États-Unis et de son application en France (1833). Beaumont e Tocqueville apresentam os seguintes títulos: advogados da Corte Real de Paris e membros da Sociedade Histórica da Pensilvânia.
Tocqueville aproveitou  sua estada na América do Norte, para examinar o funcionamento do sistema político. Em 1835,  publica o Livro I de A Democracia na América subdividido em duas partes. O Livro II somente aparece em 1840.
Desde logo, a obra causou um grande impacto na opinião européia. Viajando nesses anos à Inglaterra, Irlanda e Suíça, Tocqueville entra em contato com diversas personalidades desses países, com as quais manterá a partir de então animada correspondência, como é o caso de John Stuart Mill. Graças ao relacionamento com este último, publica, em 1836, na London and Westminister Review, o artigo “L’État social et politique de la France avant et depuis 1789”, que mereceria enorme acolhida pela novidade ali contida, no que respeita à Revolução Francesa, que teremos ocasião de indicar expressamente. Em 1838, torna-se membro da Académie des Sciences Morales et Politiques e, em 1841, da Académie Française.
Em 1839, Tocqueville é eleito deputado e até fins de 1851 manterá intensa atividade política. Depois da Revolução de 1848, que encerra o Reinado de Luís Felipe, elege-se para a Assembléia Constituinte (1848) e, durante o ano de 1849, exerce a função de Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Os compromissos de ordem política levam-no a reduzir a atividade intelectual, retomada em 1850. Escreve então o livro Souvenirs, em que descreve os anos da política. Volta-se em seguida para o estudo da Revolução Francesa. Pesquisa com intensidade as características do ciclo anterior a que denominaria de antigo regime, viajando inclusive à Alemanha para estudar o sistema feudal., em 1856, publica a primeira parte de O Antigo Regime e a Revolução. Em 1857, viaja à Inglaterra, ainda para pesquisar o mesmo tema. Falece em Cannes em 16 de abril de 1859, com a idade de 54 anos.
Raymond Aron (1905/1984), eminente sociólogo francês, destaca o trecho adiante de A democracia na América como expressivo do entendimento de Tocqueville do que seria o regime democrático:
“Se vos parece útil desviar a atividade intelectual e moral do homem para atender às necessidades da vida material, empregando-a na produção do bem-estar; se a razão vos parece mais útil aos homens do que o gênio, se vossa finalidade não é criar virtudes heróicas, mas hábitos tranqüilos; se tendes preferência por ver vícios em vez de crimes, e se preferir encontrar menos ações grandiosas a fim de encontrar menos ações hediondas; se, em lugar de agir no seio de uma sociedade brilhante vos parece suficiente viver no meio de uma sociedade próspera; se, por fim, o objetivo principal do governo não é, segundo vossa opinião, dar a maior força ou a maior glória possível a todo o corpo da nação, mas sim garantir a cada um dos indivíduos que a compõem o maior bem-estar, resguardando-o da miséria, neste caso, devereis igualar as condições, para constituir o governo democrático. Se não há mais tempo de fazer uma escolha, e uma força superior à do homem vos arrasta, sem consultar vossos desejos, a um dos dois tipos de governo, procurai, pelo menos, extrair dele todo o bem de que é capaz; conhecendo seus bons instintos, e também suas más inclinações, esforçai-vos por promover os primeiros e restringir estas últimas”.
Do texto citado, Aron extrai a seguinte conceituação de democracia:
“A seus olhos, a democracia consiste na equalização das condições. Democrática é a sociedade onde não subsistem distinções de ordens e de classes; em que todos os indivíduos que compõem a coletividade são socialmente iguais, o que não significa que sejam intelectualmente iguais, o que é absurdo. Ou economicamente iguais, o que, para Tocqueville, é impossível. A igualdade social significa a inexistência de diferenças hereditárias de condições; quer dizer que todas as ocupações, todas as profissões, dignidades e honrarias são acessíveis a todos. Estão portanto implicadas na idéia da democracia a igualdade social e, também, a tendência para a uniformidade dos modos e dos níveis de vida”.
Portanto, a democracia não se propõe, como imaginava Rousseau, restaurar o bom selvagem que o homem teria em seu interior, tendo sido aniquilado pela ssociedade. Essa hipótese equivale a supor que o homem poderia ultrapassar as próprias limitações para tornar-se um ser moral. Dessa idealização, resultaria terem sido mandados para a guilhotina aqueles que, ao sabor do governante no poder, não se enquadrariam em semelhante figurino.
É interessante registrar o balanço do que escreveu Tocqueville, decorridos 150 anos do relato de sua viagem.
Foi publicado na revista Times. Seu autor, Paul Gray coloca-se na pele de Tocqueville e começa lembrando que, quando da primeira visita, tinha 26 anos e o país apenas 50, como nação independente. A população dos Estados Unidos era então de 13 milhões, tendo aumentado para 240 milhões, 150 anos depois. O número de Estados passou de 24 para 50. No mesmo período, emerge o poder do automóvel e da televisão.
Tudo isto acarretaria, segundo Gray, algumas alterações não previstas por Tocqueville, o que o faria reorientar o sentido de sua crítica. Assim, no tempo de Tocqueville, não havia pessoas ricas na América, havendo, por isto mesmo, um grande empenho na promoção e melhoria dos serviços públicos. Passado um século e meio, há grande número deles e Tocqueville certamente não apreciaria o seu estilo de vida que consiste basicamente em criar, para si próprios, condições especiais de vida, desinteressando-se do que é público. Verificaria com satisfação, contudo, que o sistema consegue manter escolas e outros serviços públicos de excelente padrão.
No que respeita aos negros, Tocqueville havia escrito o seguinte: “Compreender-se-á sem dificuldade que, neste particular, é necessário que nos limitemos ao vago das conjecturas. O espírito humano tem dificuldades em conseguir traçar de algum modo um grande círculo em torno do futuro; mas, dentro deste círculo, agita-se o acaso que escapa a todos os esforços. No quadro do futuro, o acaso constitui sempre como que o ponto cego onde o olho da inteligência não é capaz de penetrar”.    
 Ainda assim, atreve-se a prever o choque que acabaria eclodindo entre o Sul e o Norte a propósito dessa questão e expressa a seguinte conclusão: “De resto, sejam quais forem os esforços dos sulinos para conservar a escravidão, não o conseguirão para sempre. A escravidão, encerrada num só ponto do globo, atacada como injusta pelo cristianismo, como funesta pela economia política, a escravidão, em meio à liberdade democrática e às luzes da nossa época, não é de forma alguma uma instituição que possa durar. Em ambos os casos, necessário se faz esperar grandes infortúnios. Se a liberdade for recusada aos negros do Sul, eles acabarão por tomá-la violentamente pelos seus próprios esforços se lhes for concedida, não tardarão a abusar dela”.
Tocqueville reconheceria que a situação evoluiu numa direção em que muita coisa de positivo seria apontada. Negros encontram-se em posição de autoridade e proeminência. Artistas dessa origem gozam da franca preferência do público. Contudo, veria situações de intolerância e injustiça, a exemplo da concentração de contingentes negros em partes decadentes de grandes centros urbanos, onde se tornam corriqueiras cenas de violência e é grande a incidência de criminalidade. No que respeita entretanto ao maior temor de Tocqueville, que se cifrava na onipotência e tirania da maioria, Gray observa que ficaria muito surpreso ao deparar-se com a grande capacidade de fazer ruído e impressionar a opinião que muitas minorias vieram a conquistar.
Enfim, Gray conclui que Tocqueville, aplaudindo entusiasticamente o sentido da evolução da democracia americana, não deixaria que isto sufocasse o seu espírito crítico. Assim, repetiria o que escreveu há 150 anos: “Os homens não ouvirão a verdade dos seus inimigos. Esta lhes será oferecida, muito raramente, pelos próprios amigos”. Poder-se-ia portanto afirmar que o sistema representativo, sem violentar a natureza humana, tornar-se-ia a mais importante criação da humanidade, no que respeita à convivência social.