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Platão concebeu o Estado perfeito, avaliado de forma negativa

 

Platão nasceu em Atenas, em 425 ou 427, no seio de uma das famílias importantes, tendo recebido educação humanista e se encaminhava para a literatura. Por volta dos 20 anos passa a integrar o círculo de discípulos de Sócrates, o que o leva a redirecionar seus planos. Sócrates (470/399) era mestre de retórica, atividade muito estimada na época em decorrência da prática democrática, que exigia, dos que eram considerados cidadãos, a participação no debate de determinadas questões cuja resolução lhes estava afeta. Aqueles professores eram denominados sofistas, termo que não tinha a conotação pejorativa que veio a adquirir. Introduziu mudança radical na filosofia grega ao preferir trazer a debate questões gerais relacionadas à moral e à política, enquanto os filósofos precedentes ocupavam-se de desvendar a origem e o curso do mundo físico. Não deixou textos escritos, sendo a obra de Platão justamente uma das fontes de seu pensamento.

Sócrates foi condenado à morte, acusado de atentar contra a religião da cidade e corromper a juventude. O evento serviu de comprovação, a Platão, do caráter corrompido do regime ateniense. Dedicou-se desde então a propor um sistema filosófico que lhe permitisse formar pessoas capazes de proporcionar novo direcionamento ao mundo grego.

Ainda que haja divergências quanto à exatidão das datas, aos 40 anos (provavelmente em 388 ou 387), Platão fundou em Atenas uma escola a que deu o nome de Academia. Tampouco há clareza quanto à sua forma de funcionamento. Contudo, ainda que pudesse abrigar atividades religiosas, como se supõe, a função precípua seriam os ensinamentos filosóficos. A Academia sobreviveu ao longo do período de dominação romana e teria sido fechada pelo Imperador Justiniano, em 529 da nossa Era.

Os textos elaborados por Platão tinham a forma de diálogos, muitos dos quais foram preservados. Alguns dos que haviam sido arrolados nessa lista, acabaram expurgados por especialistas. Ascende a 35 os diálogos remanescentes, havendo também cartas que completam as suas doutrinas.

Discutiu-se muito se poderia ser reconstituída a cronologia dos diálogos sem que se chegasse a um acordo. Tudo leva a crer que Platão não se lançou à elaboração de uma obra sistemática, a exemplo de Aristóteles. De sorte que o mais adequado parece ser ordená-los de forma temática. Nesta oportunidade, vamos nos limitar a apresentar, de forma sucinta, uma idéia geral da obra, detendo-nos, em seguida, no seu pensamento político, dada a atualidade de que passou a revestir-se ao tê-lo associado ao autoritarismo de nosso tempo.

Assim, haveria um grupo que se limitaria a transmitir o método socrático, através do que se convencionou denominar de dialética, isto é, a explicitação das contradições. Em síntese, Sócrates pede ao interlocutor que proponha uma definição e, em seguida, avança as objeções. Embora este seja o método presente a todos os diálogos, os chamados “socráticos” não se preocupam em chegar a qualquer resultado. A título de ilustração, toma-se aqui o diálogo intitulado Laques (ou do valor), que se ocupa da coragem.

Sendo dois os interlocutores de Sócrates (Laques e Nícias), compete ao personagem que dá nome ao diálogo avançar a primeira definição: “o homem corajoso é aquele que agüenta firme contra o inimigo”. Sócrates considera-a muito estreita, isto é, abrangeria número limitado de casos. Então Laques apresenta outra: “a coragem é uma espécie de firmeza”. Mas, objeta Sócrates, se esta firmeza se baseia na loucura e na ignorância, não pode ser a coragem. Instado a pronunciar-se, Nícias diz que a coragem é a ciência daquilo que deve ser temido e daquilo que não deve ser temido. A nova objeção de Sócrates é a seguinte: se a coragem é uma ciência, então deve ser a ciência de todos os bens e de todos os males; mas esta definição aplica-se à virtude em geral. Como se vê, o interesse está centrado no processo – como se processa a elaboração conceitual – ao invés de voltar-se para aquilo que poderia ser considerado como o desfecho.

Outros diálogos “socráticos” seriam Lisis (trata da amizade); Carmides (da temperança); Eutrifon (da piedade) e assim por diante.

Os que integrariam a fase platônica propriamente dita são conclusivos e têm objetivos nítidos, primeiro criticar os rumos seguidos pelo governo da cidade e, ao mesmo tempo, dispor de uma proposta de forma de governo que não se limite a atender à circunstância mas corresponde a uma solução definitiva. Neste grupo costumam ser arrolados cinco diálogos: Górgias, Menon, Banquete, República e Fedro. No conjunto o mais importante seria República porquanto contém a sua proposta de organização política da sociedade, considerada como a primeira formulação teórica das formas autoritárias de exercício do poder. O diálogo Leis consiste numa recompilação dos temas da República.

De certo modo esta parcela da obra de Platão é preparada nos diálogos dedicados à condenação de Sócrates (Apologia de Sócrates; Criton e Fedon).

O segundo grande objetivo da fase afirmativa (“platônica”) seria apresentar o conjunto de sua proposta filosófica. Como entretanto não parece propor-se à elaboração de um sistema – possibilidade que talvez só a Aristóteles haja ocorrido –, os princípios básicos estão dispersos. Assim, a chamada “alegoria da caverna” – que toma por base para apresentar a tese de que haveria um mundo das idéias de que se louvara o Demiurgo para criar o que existe – encontra-se na República. No Timeu recorre amplamente à mitologia para apresentar uma espécie de teoria do mundo físico, aparentemente sem se preocupar em compatibilizá-la com o que poderia ser considerado como “teoria do conhecimento”.

A tese de que haveria a alma incorruptível e eterna, que sobreviveria à morte física, está dispersa e referida em vários diálogos. A dialética que estrutura os diálogos tem algo a ver com esta doutrina, na medida em que o verdadeiro significado das idéias estaria impressa na alma, podendo ser reavivado.

Há ainda um grupo de diálogos em que procurou distinguir o filósofo dos sofistas e do político, personagens que reputa essenciais à vida grega (Parmênides, Sofista e Político).

Os ensinamentos de Platão propiciaram a base a partir da qual Aristóteles lançou-se à sua vasta obra de sistematização do saber. Ainda assim, o platonismo teve curso autônomo, influiu em outras escolas gregas e experimentou longa sobrevivência. Os diálogos de Platão acham-se traduzidos nas principais línguas sendo sucessivamente reeditados e muito apreciados pela beleza do estilo literário.

Segue-se breve sumário de seu pensamento político.

A proposta de Platão para o ordenamento político da sociedade encontra-se no diálogo que se denominou República, onde formula o ideal de um Estado perfeito. Contudo, os estudiosos entendem que outros textos precisam ser considerados para a plena compreensão da posição doutrinária a que chegou. Nesse conjunto, costuma-se privilegiar as cartas nas quais relata suas sucessivas tentativas de influir nos destinos políticos de Siracusa, que era então a principal cidade da Sicília, exercendo inclusive uma espécie de hegemonia sobre toda a ilha. Desde o século VIII os gregos dispunham de entrepostos comerciais – e de colônias habitadas por gregos – em diversas partes da ilha. Nessa parte do mundo grego, a partir da metade final do século VI, floresceu a escola fundada por Pitágoras que, além de haver desenvolvido o conhecimento matemático, tornou-se uma seita esotérica que supunha estivesse o mundo escrito em linguagem matemática, idéia que Platão incorporou aos seus ensinamentos e viria a ter grande fortuna quando se deu, no Renascimento, o reencontro com a sua obra.

Outros ensinamentos que Platão teria adquirido com aquela escola dizem respeito à imortalidade da alma e também a convicção de que haveria uma ordem harmoniosa no cosmos, abrangendo o homem. Haveria assim uma justiça providencial, exigente de que a sociedade seja governada por quem possa dela aperceber-se e praticá-la, isto é, um filósofo que seja tornado rei. A presença de Siracusa em sua obra prende-se à convicção de que ali havia encontrado quem daria cabo da incumbência.

Platão foi a Sicília, pela primeira vez, em 387, durante o reinado de Dionísio, o velho. Ainda que a vida fosse ali considerada feliz, diz expressamente que “não me agradou em absoluto”. E explica a repulsa, desde que era “passada em festins o dia todo, à maneira itálica ou siciliana, em que a gente se empanturrava de comida, duas vezes ao dia, e só dorme acompanhada...”  Acredita que estados assim estariam condenados a experimentar sem resultados os regimes existentes (tirania, oligarquia ou democracia). Conheceu entretanto Dião, irmão de uma das mulheres do tirano e que o compreendeu melhor “do que todos os jovens com quem então havia convivido”. Depois da morte de Dionísio, o velho (367), Dião convenceu ao jovem Dionísio, que assumiu o trono, a convidar Platão, o que viria a ocorrer sem resultado. Dionísio expulsa Dião de Siracusa mas consegue atrair Platão uma terceira vez. Finalmente, Dião toma o poder em Siracusa, com o apoio dos gregos, mas é morto (3454). Platão ainda procura influir na política da ilha, dirigindo conselhos aos amigos de Dião. Das treze cartas de Platão que nos restaram, sete referem-se às suas intervenções na política de Siracusa. Uma delas tem sido muito divulgada com o título de A sétima carta. Nesta, de certa forma resume aqueles contatos mas a divulgação deve-se, sobretudo, a que contém a maneira como Platão entende o processo do conhecimento.

De início, Platão refere a história política de Atenas e expressa a seguinte conclusão: “... as cidades de nosso tempo são mal governadas por ser quase incurável sua legislação, a menos que se tomassem medidas enérgicas e as circunstâncias se modificassem para melhor. Daí ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia com proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes formas de justiça política ou individual. Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos, ou de começarem seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes das cidades”.

Numa das cartas dirigidas aos amigos de Dião, Platão expressa desse modo as razões de sua insistência: “não tinha senão que persuadir suficientemente um único homem e tudo estaria resolvido”.

Gorgias tem o subtítulo indicativo de que se trataria da retórica. Esta não diria respeito apenas à capacidade argumentativa, refinada arte cultivada pelos sofistas, isto é, pelos professores que a tal mister se dedicavam, entre estes o próprio Sócrates. Mais que isto, a retórica é considerada como instrumento de poder porquanto numa democracia, como se dava em Atenas, o domínio da palavra e da persuasão era decisivo para impor determinada política. Por essa via chega-se à moral, ao justo e ao injusto.

Na discussão, Sócrates enfrenta sucessivamente a Gorgias, Polo e Calicles, que diz serem “os mais sábios entre os gregos da atualidade”. Não obstante, consideram-se derrotados e retiram-se da cena, um em seguida ao outro. Gorgias sustenta que o conhecimento do justo e do injusto é alheio ao ensino e ao exercício da retórica. Polo pretendia que o poder, à margem da justiça, oferece maior segurança. Calicles, por fim, expõe a tese de que a ambição individual pode saciar-se no poder sem preocupar-se com a injustiça. Sócrates irá defender a tese de que a justiça é o objetivo da política, que somente o justo pode ser feliz e que é melhor sofrer a injustiça que cometê-la, embora saiba que as afirmativas dos seus interlocutores correspondem à posição geralmente aceita. Por isto critica diretamente a política pragmática da cidade, sem poupar aos governantes mais ilustres, como Temístocles e Péricles, evidenciando a incompatibilidade entre o exercício do poder em bases morais, e a ordem democrática. Sócrates chega mesmo a proclamar-se como o único político autêntico.

Em que pese o significado tanto das cartas como do diálogo precedente, seria na República onde Platão formula claramente aquilo a que corresponderia o primeiro modelo de sociedade fechada, governada de forma não apenas autoritária mas verdadeiramente totalitária. É o tema do texto clássico de Karl Popper (A sociedade aberta e seus inimigos).

Na discussão, Sócrates continua como o personagem principal, embora se trate evidentemente de uma nova fase dos diálogos, aquela em que Platão formula doutrinas conclusivas. O tema consiste no regime político ideal, ou melhor, qual a melhor maneira de organizar a vida em sociedade.

O verdadeiro tema do diálogo somente aflora quando bem adiantado o Livro II e, mesmo assim, será sucessivamente entremeado de múltiplas derivações e observações paralelas, nos Livros subseqüentes. Cuida-se primeiro de indicar o que seria uma cidade, a começar das necessidades relacionadas à sobrevivência material (alimentação, moradia e vestuário). Desdobrando-se as formas de atendimento a essas necessidades, chega-se ao aglomerado que a constitui. A premissa geral é a de que cada um exerça a função para a qual está habilitado. A defesa exige uma classe especial que descreverá minuciosamente. Deverá ser sustentada pelos cidadãos, eximindo-se de qualquer outro trabalho senão o preparo para o fim a que está destinada. Esse grupo social, numa sociedade ideal, deveria viver num regime tipicamente comunista, nada tendo de próprio.

O espírito que preside à elaboração aparece plenamente na recomendação de que, sendo imprescindível dispor de um sistema educacional, os responsáveis pela cidade se esforçarão no sentido de que nada nessa matéria seja alterado sem o seu consentimento. As novidades são todas discriminadas. O projeto de Platão consiste primeiro em estabelecer o regime ideal, e, alcançado este, impedir qualquer mudança.
E assim os sucessivos segmentos dessa sociedade, no regime perfeito, seriam submetidos a uma verdadeira operação de enquadramento.

Platão acreditava francamente na eficácia de uma ditadura dos sábios e esforçou-se não apenas em concebê-la idealmente mas sobretudo buscou a oportunidade de estabelecê-la em lugar da democracia ateniense.