Galeria Grandes Personalidades

02/2008
William Pitt e a independência do Parlamento


William Pitt (1759/1806) era filho do Conde de Chatman, conhecido político que tinha o mesmo nome. Concluiu sua formação humanista em Cambridge, aos 17 anos. Revelou desde cedo grande interesse pela vida política do país e achava-se presente à sessão da Câmara dos Lordes em que seu pai faleceu, na própria tribuna, enquanto discursava (1778). Tinha 22 anos quando se elegeu para a Câmara dos Comuns. Seu primeiro discurso no Parlamento revelou que se tratava de um jovem extremamente bem preparado para a vida pública, a ponto do Primeiro Ministro da época (Lord North) haver registrado que fora o melhor a que presenciara enquanto membro do Parlamento. O jovem parlamentar teria oportunidade de participar dos debates relacionados à Independência dos Estados Unidos, propugnando pelo fim da beligerância.

Em março de 1782 iniciou sua primeira participação no governo whig1, formado em decorrência da vitória eleitoral alcançada naquele ano. Na primeira reforma ministerial seria nomeado Ministro do Exterior. Tinha então apenas 23 anos. Permaneceu no posto um ano.

A experiência parlamentar de Pitt convenceu-o de que a forma de escolha dos membros da Câmara dos Comuns proporcionava ao país uma falsa estabilidade. O sistema em vigor, que dava excessivo poder a alguns de seus membros – pelo direito de eleger representante em localidades sem qualquer representatividade –, segundo seu entendimento, carecia de uma profunda reforma. Tão logo saiu do governo, submeterá à Câmara um projeto que incluía: 1°) verificação e punição de suborno a eleitores; 2°) eliminar a representação das localidades que, pelas reduzidas dimensões do eleitorado, facilitava a corrupção; e, 3°) ampliar o número de componentes da Câmara dos Lordes. A proposta foi derrotada por 293 a 149 votos. Embora desfavorável, tal resultado permitiu-lhe verificar que suas idéias eram apoiadas por expressivo grupo de deputados. Desde então passou a exercer inconteste liderança do que se poderia denominar de elemento renovador.

Em fins daquele ano (1783), tendo o gabinete renunciado, o Rei Jorge III indica-o para o cargo de Primeiro Ministro. A maioria receberia a indicação com uma grande gargalhada, o que não impediu a sua eleição mas praticamente paralisou o seu governo. As sucessivas derrotas na Câmara não o levaram a renunciar. Ao contrário, aproveitou a circunstância para popularizar suas idéias no país, considerando-se que teria contribuído para estigmatizar a representação daquelas localidades, desprovidas de maiores contingentes eleitorais, designando-as como “burgos podres”. Confiante nessa estratégia, convocou eleições gerais para março de 1784. Estas eleições asseguraram-lhe maioria. Elegeu-se representante de Cambridge, colégio eleitoral incluído entre aqueles de maior destaque.

William Pitt ganhou sucessivas eleições e permaneceu no poder até 1801, isto é, dezessete anos.

Em sua longa permanência na chefia do governo, Pitt privilegiou as seguintes linhas de atuação: lª) Aperfeiçoar os mecanismos governamentais destinados a transformar a Inglaterra na maior potência comercial do mundo, introduzidos por Elisabete I e que, embora negligenciados sob os Stuart, lograram ampla continuidade nos dois séculos desde então transcorridos. Conseguiu muita coisa neste sentido, inclusive a eliminação do contrabando; e, 2ª) Aperfeiçoar o arranjo institucional do Império a fim de evitar fraturas, a exemplo daquele que resultou da independência dos Estados Unidos. Nesse mister não seria bem sucedido. Concebeu um mecanismo de convivência com a maioria católica da Irlanda, atribuindo-lhe a prerrogativa de fazer-se representar no Parlamento inglês, respeitados os direitos da minoria protestante. Esse arranjo encontrou uma formulação acabada em 1801 mas encontrou grande resistência, a começar do próprio rei George III, levando à renúncia de Pitt.

O seu grande feito, entretanto, consistiu em tornar o Parlamento uma instituição independente perante a Coroa e respeitada pela opinião pública. O desfecho dessa conquista seria o surgimento de uma variante do governo representativo: o denominado sistema parlamentar ou parlamentarismo. Na Inglaterra preservou-se a monarquia, porém as funções executivas passaram a ser exercidas por um governo não só constituído como aprovado pelo Parlamento, e por este controlado. Nessa modalidade de monarquia constitucional, "o Rei reina mas não governa".

O curioso é que esse fato notável foi alcançado em que pese a Câmara dos Comuns não haja acolhido o seu projeto de reforma, transformando-o em lei. Além do projeto de 1783, antes referido, voltaria à carga, animado pelos resultados eleitorais alcançados em março de 1784. Gozando de inconteste prestígio nos mais amplos círculos do país, acreditava que venceria a resistência, na Câmara dos que seriam diretamente afetados. A nova proposição consistia em extinguir a representação de 37 localidades que não tinham qualquer representatividade e ampliar a base territorial de outras, de modo a dispor de mais 34 lugares. As 71 cadeiras daí resultantes seriam distribuídas naquelas regiões em que a população registrava crescimento.

Apesar de advertido de que, se não fechasse a questão – fazendo com que a votação equivalesse a um voto de confiança –, Pitt recusou o alvitre e foi derrotado. A proposição obteve 174 votos enquanto 248 representantes votaram contra. Grande número de deputados deixou de comparecer à votação, quase um terço, porquanto a Câmara era integrada por 600 deputados, enquanto votaram apenas 422.

Apesar de derrotado, Pitt conseguiu implantar padrão de austeridade no exercício da função. Rompendo com a praxe, nenhum de seus ministros poderia obter emprego nas Companhias de Comércio, que era a forma pela qual o governo organizava o intercâmbio comercial.2 A compra de votos passou a merecer tal repulsa que virtualmente cessou. Os recalcitrantes eram denunciados e execrados. Os líderes políticos tiveram que se preocupar em preservar a reputação. O exemplo do próprio Pitt tornou-se edificante: ao sair do governo acumulou uma dívida tão grande que, embora ajudado pelos amigos, teve que se desfazer do patrimônio da família, inclusive a casa em que residia.

Assim, ainda que a reforma preconizada por Pitt acabasse sendo postergada até 1832, nos decênios posteriores à sua saída do governo a interferência dos reis no governo é efetivamente reduzida.

Os rumos seguidos pela Revolução Francesa tiveram um grande impacto nos destinos das reformas capitaneadas por Pitt, desde que, progressivamente, as relações com a França tornaram-se o tema fundamental.

De início, pareceu ao governante inglês que se tratava de assunto doméstico daquele país. Entretanto, o fato de ter-se tornado patente a existência na Inglaterra de grupos favoráveis àquele movimento, contando inclusive com o apoio de parlamentares,3 levou-o a condenar publicamente tal posicionamento. Diante da execução de Luís XVI em janeiro de 1793, retirou de Paris o embaixador inglês. A primeiro de fevereiro seguinte, a França declarou guerra à Inglaterra.

Desde então, Pitt passa a atribuir prioridade á luta contra a França. Entre março e outubro desse mesmo ano (1793), consegue promover coalizão militar integrada pela Rússia, Prússia, Áustria, Espanha, Portugal e diversos principados germânicos. A coalizão sofreu diversas derrotas em 1794 e a Inglaterra preparou-se para o prolongado conflito que de fato ocorreria. Os impostos elevaram-se brutalmente mas ainda assim o país enfrentava déficits sucessivos.

Afastando-se do governo, em 1801, por motivo da desaprovação pelo monarca de sua política em relação à Irlanda - batizada de "emancipação católica" –, Pitt voltaria ao poder em 1804 para fazer face à ostensiva preparação da Armada Francesa para invadir a Inglaterra. Atenderia de modo satisfatório a esse chamado, mas logo dar-se-ia conta de que a tomada do poder por Napoleão, em 1799, iria postergar por muitos anos a resolução do conflito. Os ingleses conseguiram destroçar a Armada Francesa na Batalha de Trafalgar, a 21 de outubro de 1805. Porém, quase de imediato, Napoleão obteve uma grande vitória sobre a coalizão, em Austerlitz, em dezembro do mesmo ano. Deprimido pelos rumos da guerra, Pitt adoece seriamente, vindo a falecer a 16 de janeiro de 1805.

A consolidação do governo representativo na Inglaterra, no século XVIII, teve profundas conseqüências nos destinos do Ocidente.

O caminho apontado pela Revolução Francesa não conduziu á concretização de nenhuma de suas promessas. A liberté que era o centro de sua bandeira, direcionada precisamente contra a monarquia absoluta - ideário que se supunha seria melhor efetivado pela República, proclamada em 1792 - viu-se espezinhada, tanto pelo Terror dos republicanos como pela revogação do princípio constitucional, sob Napoleão, ao proclamar-se Imperador e dispensar a existência do Parlamento. O ideal de egalité seria apropriado pela nova vertente, socialista, surgida no século XIX, que pretendia a igualdade social imposta pela força, exigente da abolição dos ricos, que o marxismo também saberia encarnar. E, quanto à fraternité, seria simplesmente esquecida, tamanho o ódio que a Revolução acabou inoculando na convivência da Europa continental.

Num quadro destes, a alternativa do governo representativo deixava de ser um simples ideário vazio, a exemplo do que se tornara a experiência da França. Pelo caminho da reforma, daria corpo ao projeto moral que as consignas da Revolução Francesa pretendiam expressar, reduzindo-o à escala humana, única capaz de leva-lo à progressiva implantação e sucessivo aperfeiçoamento.

 

1 Denominação pela qual era conhecida a facção política que, depois da Reforma Eleitoral de 1832, adotou o nome de Partido Liberal.

2 Vigorava a doutrina chamada mercantilismo, segundo a qual os ganhos do país advinham do comércio, razão pela qual deveria ser controlado de perto pelo Estado.

3 Justamente essa circunstância é que levaria Edmund Burke (1729/1797) a escrever Reflexões sobre a revolução na França (1790), texto que viria a tomar-se clássico.