Galeria Grandes Personalidades

04/2008
François Guizot e aplicação, ao continente,
          da isolada experiência inglesa

 

A personalidade, que ora vamos considerar, destaca-se sobretudo por haver implantado com êxito, no continente europeu, o governo representativo que se firmara, isoladamente, nas ilhas britânicas. Até então –graças principalmente à Revolução Francesa— parecia inadaptável às particulares condições do país. As tentativas de transplantá-lo à Península Ibérica e a outras nações européias tampouco tinham sido bem sucedidas. É certo que essa experiência, que durou de 1830 a 1848, viria a ser interrompida na segunda metade do século. Contudo, tornar-se-ia uma referência, na medida em que deu forma à versão continental da doutrina em que se sustenta, passando à história com a denominação de liberalismo doutrinário. Exerceu poderosa influência  no resto da Europa e em outras partes, inclusive no Brasil durante o Segundo Reinado.
François Guizot (1787/1874) nasceu em Nimes, França, no seio de uma família da velha burguesia protestante. Seu pai era advogado e foi guilhotinado no ano II da Revolução, num momento, frisa um dos principais estudiosos de seu pensamento, Pierre Rosanvallon, “em que o confronto entre os membros do partido da montanha e os girondinos exprimia também a luta do pequeno povo católico contra a burguesia protestante.” (Le moment Guizot, Paris, Gallimard, 1985). Sua mãe levou-o para Genebra, onde recebeu a sua primeira formação, num ambiente marcado pelo liberalismo e o pietismo calvinista. Aos 19 anos retornou à França, trabalhando como preceptor em casa de família, para custear os estudos. Concluiu a Faculdade de Direito e ingressou no serviço público. A partir de 1812 é professor de história moderna na Universidade.
Com a restauração e a chegada dos ultras ao poder, forma na oposição.
É dessa fase a grande elaboração teórica que efetiva, tornando-se o principal formulador da corrente a que aludimos (liberalismo doutrinário), expressão do liberalismo no Continente já que até então achava-se confinado à Inglaterra. Nesse período destacam-se os seguintes escritos: Du gouvernement répresentatif et de l’ état actuel de la France (1816); reimpresso várias vezes com alguns acréscimos, constituiu o manifesto inicial dos doutrinários. Monarquista constitucional, Guizot colocou-se numa posição intermediária entre os ultras e os radicais. Seguem-se as obras intituladas Des conspirations et de la justice politique (1821), Des moyens de gouvernement et d’ opposition dans l’ état actuel de la France (1821), De la peine de mort em matière politique (1822), expressivas de um estilo muito peculiar, de quem faz oposição de maneira construtiva, avaliando criticamente a situação, mas deixando entrever soluções viáveis. Analistas consideram-nas conselhos mais que ataques aos seus adversários. Em que pese a sua moderação, as desavenças políticas terminaram fazendo com que perdesse a sua cadeira de história na Sorbonne, tendo o seu curso sido clausurado em 1825. Pouco antes, Guizot tinha publicado o resumo das suas aulas sob o título de Histoire du gouvernement représentatif (2 volumes). Nessa época, de outro lado, o nosso autor empreendeu a primeira série dos seus trabalhos históricos, que lhe proporcionariam definitivo renome no universo das letras francesas. Os seus cursos na Sorbonne deram lugar a obras muito importantes
   Sua proeminência política adveio da participação no governo saído da Revolução Liberal de 1830. Foi Ministro do Interior em seu início, incumbindo-se da revisão da Carta; organizou o gabinete iniciado em 1832, que durou quatro anos, integrando-o como Ministro da Instrução Pública; e, finalmente, em setembro de 1847 assumiu as funções de Presidente do Conselho de Ministros, cargo no qual foi surpreendido pela Revolução de fevereiro de 1848. Durante a sua permanência no governo, juntamente com Victor Cousin, estruturou o ensino público francês
Situado à margem da vida política, nas cerca de três décadas que lhe restaram de vida, desenvolveu amplo magistério intelectual e moral ao longo de todo o Segundo Império. Prosseguiu com os seus trabalhos historiográficos, acrescetando-lhes grande número de títulos.
Guizot pertenceu à Academia Francesa. Ao  falecer, em 1874, tinha 87 anos de idade.
                   Dada a magnitude da obra, torna-se difícil resumir o essencial de sua contribuição. Contudo, acreditamos que atenderão a tal objetivo algumas breves indicações acerca de um dos títulos que mais o projetaram como eminente teórico. Trata-se da História da civilização na Europa (da queda do Império romano à Revolução Francesa). Reúne as aulas sobre o tema ministradas nos anos letivos de 1818, 1829 e 1830, publicadas em 1840. Considera a civilização européia como inteiramente distinta das civilizações antigas que a precederam e fundamenta essa convicção de forma ampla e consistente. O traço essencial residiria em que não obedece a um princípio diretivo único, como se dava anteriormente. Na multiplicidade encontra-se a sua superioridade. Essa circunstância deve-se sobretudo à feição assumida pela Igreja, notadamente a separação entre os poderes temporal e espiritual. É certo que a Igreja, em muitas de suas fases, pretendeu sobrepor-se ao poder temporal. Contudo, o fato de que, em tal separação consiste precisamente a fonte da liberdade de consciência, estimulou a resistência àquelas investidas. Outra contribuição notável advém do fato de que não se haja estruturado em forma de casta, a exemplo do que ocorria nos impérios antigos. A característica desta é a hereditariedade de que resulta o predomínio de determinadas famílias, conduzindo ao mais franco imobilismo social. Ao contrário disto, a Igreja recrutou seus membros nos diversos segmentos da sociedade, tanto nas camadas elevadas como nas inferiores. Esse elemento determinou que, no Ocidente, se formassem classes sociais. A obra corresponde justamente à reconstituição do processo de estruturação das classes, da luta que vieram a travar entre si, e dos grandes princípios que caracterizam a nossa civilização.
                   São estes os elementos constitutivos da civilização européia: a aristocracia feudal, a Igreja, as comunas e a realeza. Ao longo dos séculos V ao XII estratificam-se os germens de tudo aquilo que requeria a formação das nações. Mas este último elemento - uma verdadeira nacionalidade - só vai de fato emergir no período seguinte, para concluir-se, no fundamental, nos séculos XVII e XVIII. Fator aglutinante será a tensão entre os princípios da liberdade e da ordem, o primeiro herdado dos germanos e, o segundo, dos romanos.
                     Na última lição, Guizot estabelece um confronto entre a Inglaterra e o continente que exprime com toda propriedade o seu entendimento da singularidade da civilização européia. Assim, escreve: "Existe, é certo, entre a civilização inglesa e a civilização dos estados continentais uma diferença grave, de que cumpre dar conta. O desenvolvimento dos diferentes princípios fez-se, na Inglaterra, numa espécie de simultaneidade. Quando tentei determinar a fisionomia própria da civilização ocidental, comparada às civilizações antigas e asiáticas, fiz ver que a primeira era variada, rica, complexa, que jamais havia tombado sob a dominação de nenhum princípio exclusivo, que os diversos elementos do estado social achavam-se combinados, combatidos, modificados, que haviam sido continuamente obrigados a transigir e a viver em comum. Este fato, caráter geral da civilização européia, foi sobretudo da civilização inglesa: foi na Inglaterra que se produziu com maior evidência; foi ali que a ordem civil e a ordem religiosa, a aristocracia, a democracia, a realeza, as instituições locais e centrais, o desenvolvimento moral e político marcharam em conjunto, mesclados por assim dizer, com igual rapidez, ao menos a pouca distância uns dos outros. Sob o reino dos Tudor, por exemplo, em meio aos mais expressivos progressos da monarquia pura, vê-se o princípio democrático, o poder popular fortalecer-se quase ao mesmo tempo. Desencadeia-se a revolução do século XVII: ela é ao mesmo tempo religiosa e política. A aristocracia feudal aparece fortemente enfraquecida e com todos os sintomas de decadência. Entretanto, acha-se em condições de preservar um lugar, de desempenhar um papel importante e de fazer sua parte na obtenção dos resultados. O mesmo ocorre ao longo de toda a história da Inglaterra: jamais algum elemento antigo perece completamente; jamais algum princípio especial chega a uma dominação exclusiva. Há sempre desenvolvimento simultâneo das diferentes forças, transação entre suas pretensões e interesses".
                  No continente, em contrapartida, observa, aparecem todos os elementos constitutivos da civilização ocidental, antes relacionados, mas sucessivamente. Há um determinado século em que se afirma, não certamente em caráter exclusivo, mas com uma predominância bem marcada, a aristocracia feudal, por exemplo. Num outro século o princípio monárquico e, em outro, o princípio democrático.
                   A conclusão está apresentada nos seguintes termos: "Esta diferença na marcha das duas civilizações apresentam vantagens e inconvenientes. Ninguém duvida que este desenvolvimento simultâneo dos diversos elementos sociais hajam contribuído em muito no sentido de que a Inglaterra haja chegado mais rápido que os estados continentais ao objetivo de toda sociedade". Contudo, acrescenta, em ambos aparece a singularidade essencial da civilização ocidental que é chegar a um governo "capaz de conciliar todos os interesses, todas as forças, de fazê-las viver e prosperar em comum".
                   Na caracterização que efetivou da História da civilização na Europa, Ricardo Vélez Rodríguez indica como Marx tornou-se caudatário da hipótese de Guizot, mas proporcionando-lhe feição totalitária ao contrário do que preconizava o liberalismo doutrinário. Conclui deste modo essa análise:
                  "No terreno sócio-político, Guizot considera que a realidade da Europa é constituída pela luta de classes. Nada mais alheio, para ele, à realidade política da França e da Europa, do que o sonho utopista dos que achavam que seria possível uma espécie de entropia política, como se as relações sociais pudessem ser reduzidas uni-linearmente a uma única ordem de interesses. Mas, ao mesmo tempo, o pensador francês é consciente de que a época é a das classes médias, as únicas capazes de dotar a França de instituições livres e estáveis, superando os excessos da revolução e do absolutismo. Ora, essas classes médias identificam-se, na França da Restauração, com a burguesia. Este deve acordar e despertar a sua consciência de que se trata de uma classe chamada a garantir a unidade francesa, fazendo frente à dissolução do Terror e ao anacronismo do Absolutismo bonapartista. Eis aí, formulado claramente o conceito da consciência de classe. Sem dúvida nenhuma que Marx fez uso desse arcabouço conceitual (luta de classes, consciência de classe, classe habilitada para exercer o domínio na sociedade). O renomado teórico marxista Georgi Plekhanov (1856/1918) 1 aliás, tinha destacado esse ponto, com rara probidade intelectual, ao reconhecer que Marx era herdeiro de um liberal-conservador na formulação dos seus conceitos sociológicos chaves.
           Guizot considera-se o profeta dessa situação histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma política alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que é chamada à responsabilidade histórica, indelegável, de garantir o exercício da liberdade, mediante a criação de instituições que, salvaguardando a ordem, possibilitem o amadurecimento da civilização européia. O pensador francês atribui à burguesia o papel de pregoeira da Verdade histórica.
                  A burguesia, no sentir de Guizot, deveria garantir as instituições que alicerçam o exercício da liberdade, mediante a organização da representação. Esta consiste, cumulativamente, na luta em prol dos interesses de classe e na tentativa de, mediante a explicitação desses interesses no terreno do discurso, dar ensejo à racionalidade social, que é fruto do entrechoque das opiniões. Desse processo dialético emerge o conceito de representação. Esta seria considerada, quando estabelecido o domínio da burguesia mediante esse processo de explicitação, como a média da opinião. Não há dúvida de que esses conceitos entraram fundo no discurso político do século XIX, tanto na França quanto no Brasil".
Quanto ao nome dessa corrente, explica Rosanvallon: "A denominação de doutrinários, que parece ter sido utilizada pela primeira vez em 1817 nos corredores da Câmara dos Deputados, referia-se no início unicamente a Camille Jordan, de Broglie e Royer-Collard. A expressão caracterizará em seguida a corrente indissociavelmente intelectual e política que se estruturará progressivamente ao redor de Guizot, aparecendo este após 1820 como o verdadeiro líder do que no início não era mais do que um pequeno grupo de parlamentares". O grupo dos doutrinários esteve também integrado por Benjamin Constant (como figura precursora), Remusat e de Serre. Tocqueville, como frisa Ubiratan Macedo (1937/2007), "a rigor, não pode ser agregado aos doutrinários mas é impensável sem eles e corresponde certamente ao corolário de sua obra".
                     O projeto político de Guizot equivalia, ainda segundo Rosanvallon, na obra citada, ao ideal de "finalizar a Revolução, construir um governo representativo estável, estabelecer um regime que, fundado na Razão, garantisse as liberdades. Esses objetivos definem a tripla tarefa que se impõe a si mesma a geração liberal nascida com o século. Tarefa indissoluvelmente intelectual e política, que especifica um momento bem determinado do liberalismo francês: aquele durante o qual o problema é prevenir a volta de uma ruptura mortal entre a afirmação das liberdades e o desenvolvimento do fato democrático. Momento conceptual que coincide com o período histórico (da Restauração e da Monarquia de Julho), no curso do qual essa tarefa está praticamente na ordem do dia e que se distingue, ao mesmo tempo, do momento ideológico, que prolonga a herança das Luzes, e do momento democrático, que se inicia depois de 1848 (...)".

1 Cf. G. Plekhanov. "Les premières phases d'une théorie: la lutte de classes". In: Oeuvres philosophiques. V. II, Moscou, s.d. (Prefácio à segunda edição russa do Manifesto Comunista). Cit. por Rosanvallon, Le moment Guizot, p. 394. Acerca da influência de Guizot em Marx, escreve Rosanvallon: "Poderá ser observada a atração exercida por Guizot sobre certos teóricos de inspiração marxista, na medida em que ele tinha sido considerado por Marx e Engels como um dos historiadores burgueses que tinham inventado a noção de luta de classes". A respeito, Rosanvallon menciona os seguintes autores, além de Plekhanov: Robert Fossaert, "La théorie des classes chez Guizot et Thierry", in: La Pensée, jan./fev. 1955; B. Reizou, L'historiographie romantique française, 1815-1830. Moscou, s.d.